A BIBLIOTECA DE MACHADO DE ASSIS
Luciano Trigo
Os milhares de artigos e ensaios que constituem
a fortuna crítica de Machado de Assis mostram que seu patrimônio
literário é inesgotável. E está chegando às livrarias mais um volume
indispensável a qualquer leitor do Bruxo do Cosme Velho: “A biblioteca
de Machado de Assis”, com organização de José Luis Jobim e ensaios
de Jean-Michel Massa, Gloria Vianna, Ivo Barbieri e John Gledson,
entre outros.
Co-editado pela Topbooks e pela Academia Brasileira
de Letras, é um desses livros que, quando lançados, a gente se pergunta
como foi possível passar tanto tempo sem eles. Não se trata de mera
catalogação do acervo da biblioteca machadiana — embora as informações
detalhadas nesse terreno, por si só, já justificassem a obra — mas
de um verdadeiro guia para compreender Machado através da contextualização
literária, da intertextualidade e da identificação das múltiplas
vozes com que o escritor manteve diálogos fecundos, cuja interpretação
ainda está longe de chegar ao fim.
Pesquisa resgata as anotações do escritor
nas margens das obras
Como o próprio Jobim explica na apresentação,
é uma pesquisa fundamental por pelo menos cinco motivos: permite
comparar o universo de leitura do escritor com os padrões da época,
no Brasil e na Europa; permite comprovar ou refutar teses teóricas
sobre determinadas influências; ajuda a estabelecer os vínculos
de Machado com o pensamento científico de seu tempo, sobretudo em
relação à psiquiatria, à lingüística e ao positivismo; analisa os
comentários feitos pelo próprio Machado nas margens de seus livros;
reconstitui historicamente o papel das obras do acervo no horizonte
da época em que o autor viveu.
O volume começa com o justo reconhecimento ao
pesquisador francês Jean-Michel Massa, que em 1961 realizou um levantamento
pioneiro, publicado na “Revista do Livro”, da já então bastante
desfalcada biblioteca machadiana — parte fora doada no dia seguinte
à morte do escritor, em 1908, e jamais recuperada; outra parte se
perdera durante a Segunda Guerra, destruída pela umidade. No texto
que abre o livro, Massa comenta o desafio da compilação minuciosa
em “domínios lingüísticos”. Compilação que iluminava a obra machadiana,
multiplicando questões sobre ela.
A biblioteca do escritor não revela apenas seus
gostos e idiossincrasias, mas reflete a tradição cultural em que
ele se insere, contribuindo para a reconstituição de uma paisagem
histórica, intelectual e social. A pesquisa de Jobim serve também
para o mapeamento dos títulos relevantes no período e como eram
recebidos — e em que medida a obra de Machado representou uma continuidade
ou uma diferença em relação ao “padrão vigente” em seu contexto
de produção — ou em relação ao que Jobim chama de “sistema de referências
intelectuais de seu tempo”.
José Guilherme Merquior tinha razão quando afirmou
que foi com Machado que a literatura brasileira entrou em diálogo
com as vozes decisivas da literatura ocidental. O autor de “Dom
Casmurro” era um leitor voraz. Se nunca foi à Europa, a Europa veio
até ele através dos livros, tornando-o um viajante imóvel, o que
explica seu distanciamento crítico em relação à realidade brasileira
de seu tempo, que decifrou como ninguém. Seus campos de conhecimento
e interesse abarcavam literatura, lingüística, História, filosofia,
sociologia e psicologia, e devemos lembrar que ele leu muito mais
do que sua biblioteca continha, numa sugestão de erudição que hoje
soa esmagadora para o leitor medianamente culto.
Volume lista dedicatórias, cartões de visitas
e fotos encontrados nos livros
Vale lembrar aqui que, em texto publicado recentemente
no Brasil, o ensaísta George Steiner afirma que obras que já foram
marcos culturais hoje já não se encontram mais ao alcance de pessoas
razoavelmente cultas: as mais elementares alusões à mitologia grega,
ao Antigo e ao Novo Testamento, aos clássicos, à História antiga
e à européia tornaram-se herméticas. Toda a literatura grega e latina
e todas as tragédias de Voltaire se tornaram inacessíveis aos leigos.
Apesar das toneladas de informações instantaneamente disponíveis,
nossa bagagem cultural parece substancialmente depreciada quando
nos deparamos com a diversidade da biblioteca machadiana.
Refazendo o inventário dos livros, a pesquisadora
Gloria Vianna acrescenta 15, anteriormente perdidos, aos 718 listados
por Massa em 1961. A nota triste é que 42 volumes daquela lista
se extraviaram. Antes de chegar à Academia, aliás, a biblioteca
cumpriu uma verdadeira saga, relatada por Gloria, que ainda lista
dedicatórias, selos de livrarias e objetos encontrados dentro dos
livros, como cartões de visitas, fotografias e folhas secas, além
de um valioso catálogo de citações da obra de Machado.
Os ensaios seguintes, de Ana Lucia de Souza Henriques,
Maria Elizabeth Chaves de Mello e João Cezar de Castro Rocha, se
detêm sobre três fontes específicas da escritura machadiana: Ossian,
poeta celta do século III; Laurence Sterne, de quem o clássico “Tristram
Shandy” é influência sobre “Brás Cubas”; e a revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Complementam a edição ensaios
de Ivo Barbieri, Claudio Cezar Henriques e do próprio Jobim. “A
biblioteca de Machado de Assis” era mais um volume que faltava no
contexto dos estudos machadianos.
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
29/12/2001
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