SMITH E A RIQUEZA DAS EXPRESSÕES
Conferências mostram que autor de A
Riqueza das Nações ia além da economia
Daniel Piza
Tendemos sempre a pensar em Adam Smith (1723-1790) como o autor
de A Riqueza das Nações (1776), como o grão-pensador
do liberalismo econômico, da "mão invisível"
do mercado que, deixado livre, traria naturalmente a prosperidade
para todos. Ou seja, como um autor que, em tempos de crise financeira
e intervenção estatal, parece ultrapassado. Mas isso
não faz justiça nem ao seu livro mais famoso –
cujo tema central é a defesa do livre comércio mediante
uma comparação entre a colonização dos
EUA e a da América do Sul, aquela feita à base de
produção e lucros, esta de ocupação
e tributos – nem às suas demais obras, que vão
além da economia.
Filósofo moral na tradição
iluminista, influenciado por pensadores como David Hume e pelo enciclopedismo
francês, Smith escreveu também livros como o Tratado
dos Sentimentos Morais e um que acaba de ser traduzido no Brasil,
Conferências sobre Retórica & Belas-Letras
(tradução de Rebeca Schwartz). Essas 29 conferências
foram encontradas em 1958 e são baseadas nos manuscritos
de dois alunos de Smith na Universidade de Glasgow nos anos 1762-63.
Apesar do título pomposo, que aos ouvidos modernos soa de
um assunto morto, os textos tratam dos modos como o pensamento se
traduz em palavras e usam autores clássicos, como Cícero
e Demóstenes, mas também seus contemporâneos
ou recentes como Jonathan Swift ou Addison, da revista Spectator.
Smith se mostra favorável a uma escrita
que hoje diríamos menos retórica, isto é, mais
clara e direta, mais próxima do coloquial, sem abuso de palavras
obscuras ou excesso de metáforas. Mas ele distingue diversos
estilos, sem proclamar um como necessariamente melhor do que o outro.
Diz, por exemplo, que sentenças curtas em geral são
mais claras, mas não devem ser exclusivas, pois "o modo
desarticulado de escrever" pode prejudicar a concisão.
Bela observação. Smith sabia que simplicidade não
é o mesmo que tirar do idioma sua variedade de palavras e
suas combinações sonoras. Há uma prolixidade
na escrita que apenas mimetiza a fala e jamais usa orações
subordinadas.
Mas que ninguém pense que ele se mostre
um grande crítico literário ou um estilista moderno.
Sua preocupação é sempre com uma perfeição
que seria também a do autor como pessoa, e ele chega a criticar
Shakespeare por misturar metáforas, como se isso não
fosse "virtuoso". Também repreende em Pope o uso
da sinestesia (mistura entre sensações), como no verso
"Ensombra o bosque de um horror castanho". De Swift, destaca
as obras sérias e os poemas, mas é sabido que a melhor
parte de sua obra são os ensaios satíricos e as Viagens
de Gulliver, mais inventivos e descontraídos. Quando
entra na análise da literatura mais propriamente, como a
descrição de personagens, usa critérios como
verossimilhança de forma conclusiva.
O leitor que se preocupar em buscar nessas conferências
a ideologia do economista ultraliberal vai fracassar. Smith fala
muito pouco da especialidade que o tornou famoso, embora quando
o faça seja com relevância: ele nota que a prosa e
o comércio se desenvolveram juntos, na formação
das cidades, e não à toa em sua Londres havia estilistas
do porte de Edmund Burke e Samuel Johnson. Há, no entanto,
um paralelo possível: aqui e ali, como ao falar do espírito
guerreiro e da eloquência despojada de Atenas, entrevemos
a noção de "natureza humana" de Smith, justamente
a que foi base de seu pensamento econômico. Para ele, o livre
mercado funciona sem precisar de governo porque o ser humano, ao
defender seu interesse privado, colabora para que o interesse coletivo
seja defendido. Esse equilíbrio entre egoísmo e igualdade,
para dizer o mínimo, não acontece espontaneamente.
O capitalismo não nasceu de uma prancheta, mas precisou de
muitos corretivos para ser civilizado.
Da mesma maneira, o estilo não é
uma expressão "natural", da natureza do autor,
mas muitas vezes tem um caráter performático, uma
compensação a suas inclinações comportamentais.
Mas as conferências de Smith, além da importância
de ampliar sua imagem atual, valem muito por seus achados analíticos
e pela defesa de uma linguagem menos artificial, menos mascarada
(sentido original, aliás, da expressão de Buffon,
"o estilo é o homem"). Seu próprio estilo
não comete esse pecado, e consegue fugir a outro que aponta
com igual repulsa, o do lugar-comum. De quantas prosas hoje em dia
se pode dizer o mesmo?
caderno Cultura
O ESTADO DE S.PAULO
08/03/2009
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