ELES SÓ PENSAM NAQUILO
Livro de sociólogo defende que ciências
sociais são reféns
de conceitos teóricos e ataca acadêmicos ilustres
Fabio Victor
O sociólogo Luís de Gusmão, autor de
O fetichismo do conceito
, em sua residência em Brasília
Acaba de sair, pela editora Topbooks, um livro
capaz de balançar o coreto acadêmico das ciências
sociais. Provocativo desde o título, O fetichismo do conceito,
do sociólogo Luís de Gusmão, 56, professor
da UnB (Universidade de Brasília), cutuca vacas sagradas
da sociologia e da história ao defender que a pesquisa nessas
áreas, especialmente na primeira, é escrava dos conceitos
teóricos e descolada da vida real.
O uso de linguagem obscura e de jargões
inúteis é colocado pelo autor como sintoma dessa veneração
a termos herméticos, cunhados para resumir sistemas de pensamento
considerados novos. Gusmão puxa a orelha de mitos universais
da academia, como o francês Pierre Bourdieu (1930-2002) e
o alemão Jürgen Habermas, e espeta brasileiros célebres
como Florestan Fernandes (1920-1995) e Sérgio Buarque de
Holanda (1902-1982).
Junto a louvores ao "notável historiador"
que foi Buarque, faz reparos ao "ensaísmo especulativo"
de passagens pontuais de Raízes do Brasil e ao "uso
infeliz" das teorias de Max Weber (1864-1920) em Monções
e Caminhos e Fronteiras. Identifica Florestan como "expressão
modelar do fetichismo do conceito na investigação
social". Alexis de Tocqueville (1805-1859) e Joaquim Nabuco
(1849-1910), por outro lado, são apontados como modelos de
que é possível fazer boa análise social sem
sujeição irrestrita a conceitos. Outro contraponto
aos "fetichistas" seriam grandes romancistas clássicos
como Flaubert, Stendhal, Dostoiévski e Tchékhov.
Primeiro livro do autor, que pesquisa o tema
há 15 anos, O fetichismo... chega avalizado por figuras
de peso. O prefácio é do historiador Evaldo Cabral
de Mello, que recomendou o livro à Topbooks após receber
pelo correio o trabalho de Gusmão. "[...]Não
creio que, entre nós, se haja escrito nada de tão
relevante sobre os limites do conhecimento teórico em matéria
de ciências humanas", apontou Cabral no texto que acompanha
a edição.
O posfácio coube ao jornalista Marcelo
Coelho, colunista da Folha e mestre em sociologia pela USP, para
quem o trabalho é "um divisor de águas no pensamento
social contemporâneo". Já a orelha foi escrita
pelo professor titular de sociologia da UFMG Renan Springer, que
relata ter se inspirado no argumento de Gusmão para contestar
"inferências fantasiosas" de Max Weber.
Gusmão atribuiu a inspiração
do seu trabalho a Paul Veyne e Isaiah Berlin (1909-1997), mas conta
que o empuxo prático veio dos corredores das universidades.
"É praticamente impossível
defender um mestrado ou doutorado sem apresentar questões
teóricas, cobrança dispensável e funesta".
Para acadêmicos, livro acerta na
ideia, mas exagera no tom
Professores consideram precipitada a contraposição
feita entre conhecimento teórico e pesquisa empírica
Mencionado por Luís de Gusmão,
historiador britânico Peter Burke declara que críticas
a ele são "exageradas"
No posfácio de O fetichismo do conceito,
Marcelo Coelho escreve que não é difícil prever
as resistências que a obra pode provocar. Segundo Luís
de Gusmão, elas começaram antes de o livro vir à
luz. Nos congressos em que apresenta o estudo, conta o autor, "o
pessoal fica um pouco atônito". "Acham difícil
de engolir, mas em geral não têm argumentos. Às
vezes, o sociólogo não está acostumado a refletir",
diz ele, sociólogo que migrou para a filosofia da ciência.
Vários professores consultados pela reportagem
se negaram a comentar publicamente O fetichismo..., em geral
sob a alegação de que ainda não leram o livro.
Mas, sob reserva, criticaram o argumento do colega. Um acadêmico
de renome nacional disse que os trechos que percorreu lhe deram
"urticária pelo simplismo".
Entre os que se dispuseram a debater a tese de
Gusmão – mesmo sob ressalva de que não leram
o livro inteiro – houve contestações mais ao
tom do que à ideia do autor.
Citado na obra como uma das vítimas do
"fetichismo do conceito" em seu A fabricação
do rei [sobre Luís XIV], o historiador britânico
Peter Burke, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, considera
as críticas aos sociólogos "algo exageradas,
para dizer o mínimo".
Burke declarou concordar com Gusmão que
os cientistas sociais devem buscar a linguagem comum e evitar jargões
o tanto quanto possível. "Diferimos, porém, sobre
o que consideramos ser o mínimo. Por isso fico desconfortável
com o uso que ele fez do meu livro", disse Burke. "Segundo
Gusmão, eu poderia ter escrito A fabricação
do rei sem recorrer a Weber, Goffman, Bourdieu ou Habermas.
Sim, eu poderia, mas não seria o mesmo livro". Ele pondera
que recorreu aos teóricos "não por querer teorizar,
mas porque eles sugeriram linhas de investigação que
eu não teria encontrado por conta própria".
“Isso é muito característico
do momento que estamos vivendo, em que todos os grandes mitos estão
sob ataque cerrado. Cada tempo constrói a sua interpretação.
Estamos num tempo de desconstrução. Não é
excepcional, é das ciências humanas”, diz o historiador
da Unicamp José Jobson Arruda.
A antropóloga e historiadora Lilia Moritz
Schwarcz, professora titular da USP, considera o livro "bem
escrito e claramente polêmico", mas ressalva que, "ao
querer contrapor 'teoria a real', [o autor] acaba jogando o bebê
com a água do banho". "Se há teorias que
são por demais elípticas e interpretativas, não
vejo por que criar uma nova hierarquia que opõe Paul Veyne
a Bourdieu; Radcliffe-Brown e Malinovski a Levi-Strauss e Geertz".
"O diálogo entre funcionalistas e estruturalistas é
bem mais rico do que a mera contraposição", acrescentou.
Defensora do legado de Florestan Fernandes e
Bourdieu, a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda,
professora titular da USP, observa que "críticas demolidoras
dessa ordem não levam a lugar nenhum e se ancoram numa proposta,
para citar Machado [de Assis], de busca de nomeada [fama]".
"Florestan é um sociólogo muito importante, Bourdieu
é um renovador da sociologia. Podem e devem ser criticados,
mas não dessa forma".
Ressaltando que não se sentia à
vontade para fazer um comentário "circunstanciado"
sobre o livro sem tê-lo lido inteiro, o sociólogo Adalberto
Cardoso, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj,
elogiou Gusmão. "É trabalho muito sério
de discussão de um problema fundador das ciências sociais.
Ele tenta tratar de maneira acessível um tema muito cabeludo".
Pondera que "talvez o livro opere uma simplificação
excessiva de que essas formas [conhecimento teórico e realidade
social] são excludentes, mas há tentativas de superar
essa dicotomia". (Fabio Victor)
O FETICHISMO DO CONCEITO
AUTOR Luís de Gusmão
EDITORA Topbooks
QUANTO R$ 46,90 (358 págs.)
Publicado no caderno Ilustrada, da Folha
de S. Paulo, em 16.06.2012
RESPOSTA DO AUTOR ÀS CRÍTICAS
FEITAS A SEU LIVRO
Os comentários ao nosso livro O fetichismo
do conceito, publicados na Folha de S.Paulo do último
sábado, não foram de fato muito felizes. Com efeito,
não faz realmente nenhum sentido dizer que estamos contrapondo
a realidade social ao pensamento teórico, concebido em termos
gerais. E isso pelas seguintes razões:
1) no livro demonstramos, com base em conclusões
amplamente aceitas no âmbito da moderna filosofia da ciência,
a efetiva inexistência de um corpo de leis sociológicas
distinto e irredutível às melhores generalizações
do chamado conhecimento de senso comum;
2) se entendemos por teoria social algo parecido,
então, como reconhece sensatamente Giddens, não existe
teoria social alguma. Portanto, não podemos contrapor a realidade
ao que não existe;
3) como bem sabe qualquer pessoa minimamente
familiarizada com a reflexão epistemológica produzida
nos últimos 80 anos, o reducionismo empirista mais radical
se revelou impraticável. Já em meados do século
passado, esse empirismo foi, em larga medida, rejeitado pelos epistemólogos.
Na realidade, não podemos formular nenhum enunciado, por
mais observacional que seja, sem o recurso a termos gerais e abstratos.
Sendo assim, não temos como abrir mão do conhecimento
teórico, mais largamente entendido.
No livro, isso é repetidas vezes afirmado.
Logo, não poderíamos negar a presença e utilidade
do conhecimento do geral ou teórico. O alvo da nossa crítica
é tão somente teorias imaginárias, levadas
a sério apenas por um punhado de investigadores sociais reunidos
em torno de uma igrejinha teórica. Nada mais. Além
disso, como se não bastasse, num debate intelectual não
se contrapõe realidade à teoria, algo ininteligível,
mas sim conclusões a conclusões.
Quanto à acusação de simplificação,
a cobrança de uma maior profundidade de análise, cabe
esclarecer o seguinte: esse tipo de censura soa pertinente, bem-vindo,
apenas quando o crítico revela qual exatamente o equívoco
cometido por conta dessa suposta simplificação. Fora
isso, a acusação corre o sério risco de se
confundir com injúrias travestidas de argumento racional,
algo muito fácil de fazer, de inegável efeito retórico,
mas intelectualmente pouco respeitável.
De todo modo, não soa despropositado reclamar
do suposto simplismo das nossas conclusões epistemológicas
quando coisas elementares, básicas, didaticamente esclarecidas
no livro, ainda não foram compreendidas? Uma última
observação: não fizemos, em verdade, nenhuma
crítica ao livro A fabricação do rei,
de Peter Burke. Foi um erro incluí-lo na lista dos alvos
da nossa crítica. Nesse sentido, a reação desse
autor não tem realmente nenhuma razão de ser.
LUÍS DE GUSMÃO (em 18 de junho
de 2012)
Leia também:
Os
males do jargão |