POETA E FINGIDOR ATRÁS DAS
GRADES
Daniela Name
Com quem Bruno Tolentino vai brigar desta vez?
Muitos podem estar se fazendo esta pergunta agora, enquanto lêem
mais uma reportagem sobre o polêmico autor de "As horas
de Katharina". Faz sentido. Tolentino se especializou em provocar
debates inflamados nos jornais. Já discutiu com Caetano Veloso,
os irmãos concretistas Haroldo e Augusto de Campos, o ensaísta
Antônio Paulo Graça e o poeta Ivan Junqueira. Agora,
aproveita o lançamento de um novo livro para desenferrujar
a metralhadora giratória.
Sentado à mesa de um restaurante no Centro,
Tolentino reza para agradecer o peixe grelhado com batatas antes
de começar a falar sobre "A balada do cárcere",
livro de poemas que narra a sua experiência numa penitenciária
de Londres. O poeta foi preso em 1989, por porte de drogas, passou
22 meses detido e acabou organizando um workshop de criação
poética para os outros presos - a maioria semi-analfabeta.
- Foi nessa época que percebi que conseguia
escrever sem o auxílio da cocaína - conta Tolentino.
- Devo isso à cadeia. Achava que era a droga que me inspirava,
porque eu tinha que achar uma explicação para tanta
inspiração. Tive um longo envolvimento com o "sublime
pó" e ficava espantadíssimo de escrever tão
bem, mas depois vi que não era a droga que tornava meus versos
magníficos: eles já eram muito bons mesmo.
O poeta diz que será compreendido pela próxima geração.
No almoço de duas horas, o auto-elogio aumenta à medida
que o peixe e as batatas vão sumindo do prato. Tolentino
não parece se incomodar em ser mais conhecido pelo que fala
nos jornais do que pelo que escreve nos livros. Perguntado se sua
obra terá fôlego para continuar sendo lida daqui a
100 anos, ele disse acreditar que muito antes disso os leitores
já terão se rendido ao seu talento:
- Fui bonito, rico, gostoso, inteligente e poliglota,
enfim, uma obra-prima - afirma. - A vaidade para mim sempre foi
uma coisa natural... Quando descobri que eu também escrevia
bem, me pareceu um pouquinho demais, mas era verdade. Mas sempre
fui mais orgulhoso do que vaidoso. Sei que vai demorar muito menos
que 100 anos para eu ser lido e aceito, isso já vai se dar
na próxima geração. Vão entender que
sou o Fernando Pessoa daqui, que eu trouxe universalidade à
nossa poesia.
Tolentino se considera um oásis de talento
no deserto da poesia nacional. Acredita que as mulheres de sua geração
são muito melhores que os homens, e por isso dedica "A
balada do cárcere" a Orides Fontela, Adélia Prado
e Neide Archanjo. Ele diz que o título de sua "balada"
é uma clara citação ao livro homônimo
de Oscar Wilde, embora acredite que seus versos são menos
pessoais que os do autor inglês.
- Dou voz a um preso, Nick, que matou a mulher.
Através dele, falo da cadeia e da experiência com minha
própria mulher, de quem tinha me separado um pouco antes.
Enquanto escrevia, lembrava da imagem dela, belíssima, me
olhando através da janela do trem. Oscar Wilde fala de si
mesmo mais diretamente.
Também garante que existem diferenças
em relação ao conteúdo homossexual do poema
de Wilde. Acusado por Antônio Paulo Graça de ter feito
um "opúsculo homossexual", Tolentino conta que
ficou isolado na cadeia, por isso não recebeu nenhuma cantada:
- O único contato que tinha com os outros
era na hora dos seminários de poesia. Mas lá dá
vontade de fazer muita coisa, ainda mais porque minha sentença
inicial era de 11 anos. Não sei o que aconteceria se eu ficasse
com um daqueles homens na mesma cela. Meu poema tem um mesmo ponto
de partida que o de Oscar Wilde: um sujeito que matou a mulher.
Mas ele é muito mais pessoal do que eu, embora eu use o poema
para refletir sobre a relação com minha mulher.
Elogiado pelo poeta Ferreira Gullar, que assina
a quarta capa do livro, "A balada do cárcere" mistura
a realidade da cadeia com mitologia grega, e recebeu o Prêmio
Cruz e Sousa de 1996. Meio brincando, meio falando a sério,
Tolentino diz que irá à Academia Brasileira de Letras
perguntar se vai receber o Prêmio Machado de Assis [o mais
importante da instituição] este ano ou no ano que
vem. Ele acredita que a crítica literária brasileira
vive um de seus piores momentos:
- Não consigo achar nenhum crítico
bom - diz ele. - São todos uns canalhas, não destaco
ninguém, a não ser para o pelotão de fuzilamento.
São todos podres, todos vendidos. Prestam mais atenção
em Mano Caê e nos Chico-chicos-no-fubá da vida do que
nos verdadeiros poetas. Há uma menina que está publicando
uma tese feita na Sorbonne sobre a solidão na literatura
brasileira vista pela obra de Caetano Veloso. Francamente, um ensaio
como esse cabe num bueiro de Liliputh. Mas nossos críticos
vão dar atenção porque não estão
interessados em literatura.
O peixe já está no fim, sobram
as batatas. Tolentino pede barrigas-de-freira como sobremesa, explicando
minuciosamente a um espantado garçom que a culpa da "gravidez
das freirinhas" não é dele. Enquanto espera,
o poeta mostra que não aposentou o veneno da língua.
Diz que soube por outras pessoas que tinha brigado com Ivan Junqueira,
mas adorou romper relações com o poeta:
- Ele tinha me chamado para ser jurado de um
concurso. Aceitei, mas resolvi sair do júri na última
hora, para poder me candidatar ao prêmio. Ele ficou magoado.
Tudo bem, isso foi uma bênção. Fiquei livre
de uma múmia empolada. O fato de eu escrever muito bem milita
contra mim, minha briga com Juju-quem-queira vem daí.
Os irmãos Campos são o alvo predileto
do poeta, que escreveu o ensaio "Os sapos de ontem" com
o único intuito de criticar o concretismo. Para Tolentino,
o movimento só pôde existir porque São Paulo
é uma terra cheia de pensadores e filósofos - como
Sérgio Buarque de Holanda e Sergio Milliet - mas sempre foi
pobre de poetas.
- Os paulistas só produziram Vicente de
Carvalho e Ribeiro Couto, este um poeta menorzinho - avalia. - Cassiano
Ricardo nem comento, porque estamos à mesa. E Mario de Andrade
me dá vontade de rir. O concretismo está fazendo 40
anos de farsa. Haroldo e Augusto ainda não conseguiram ser
tão bonitos por dentro quanto são por fora.
O espírito da letra
[Um soneto do livro A balada do cárcere]
Ao pé da letra agora, em minha vida
há a morte e uma mulher... E a letra dela,
a primeira, me busca e me martela
ouvido adentro a mesma despedida
outra vez e outra vez, sempre espremida
entre as vogais do amor... Mas como vê-la
sem exumar uma vez mais a estrela
que há anos-luz se esbate sem saída,
sem prazo de morrer na luz que treme?!
O monstro que eu matei deixou-me a marca
suas pernas abertas ante a Parca
aparecem-me em tudo: é a letra M
a da Medusa que eu amei, a barca
sem amarras, sem remos e sem leme..."
caderno Prosa & Verso
O GLOBO
30/11/1996
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