A ERA DO CACAREJO
“Num momento como o nosso, em que somos
atazanados por um bando
de palpiteiros ensandecidos, que manifestam permanentemente os
próprios pensamentos, Rimbaud recorda as infinitas virtudes
do silêncio.
Ele é um modelo para todos nós”.
Diogo Mainardi
Rimbaud espancava Verlaine. Eu invejo Rimbaud.
Eu gostaria de ter espancado Verlaine. Eu gostaria de ter espancado
qualquer poeta simbolista. Verlaine vingou-se alguns anos mais tarde,
num quarto de hotel, dando dois tiros em Rimbaud. Eu também
invejo Verlaine. Ele tinha apenas má pontaria.
A editora Topbooks, depois de publicar
os poemas de Rimbaud, agora publicou suas cartas, otimamente traduzidas
e comentadas por Ivo Barroso. O primeiro lote de cartas mostra Rimbaud
e Verlaine espancando um ao outro e atirando um no outro. Qual é
o interesse disso? Para mim, nenhum. Eu poria os dois na cadeia.
De fato, os dois foram parar na cadeia. O que realmente interessa
é o segundo lote de cartas, escritas a partir de 1875, quando
Rimbaud abandonou a poesia e passou a perambular de um lado para
o outro. Num intervalo de apenas dezesseis anos – ele morreu
em 1891 –, Rimbaud fez tudo o que uma pessoa dotada de um
pingo de senso de dignidade quereria fazer: foi embora de Paris,
que é uma cidade de maricotes; entranhou-se no deserto etíope,
contraindo uma série de enfermidades; comercializou camelos;
ganhou dinheiro e perdeu dinheiro; negociou armas dos mais variados
calibres, permitindo o massacre de um monte de gente inocente; pegou
um tumor no joelho e teve a perna amputada; morreu em Marselha,
com muitas dores e pedindo ajuda a Deus, que caprichosamente se
recusou a ajudá-lo.
Os poetas simbolistas, no tempo de Rimbaud, faziam
uma grita danada. Eles se reuniam nos bares e bradavam seus versos.
Nem quando eram espancados eles se calavam. Hoje é muito
pior. A grita aumentou descomunalmente. Há gente demais papagaiando
ao mesmo tempo. Estamos cercados de poetas simbolistas. Eles se
espalharam por todos os cantos e se acotovelam brutalmente para
conseguir recitar uns decassílabos. O presidente da República
é um poeta simbolista. O chefe de cozinha é um poeta
simbolista. Até o poeta simbolista é um poeta simbolista.
Em 1875, depois de levar dois tiros de Verlaine, Rimbaud afastou-se
disso tudo. Ele simplesmente resolveu parar de cacarejar e de ouvir
o cacarejo alheio. Numa Álbum das Serrarias Agrícolas
e Florestaisde suas cartas, de Aden, ele aparece encomendando
alguns livros. De poesia simbolista? Ao contrário. Ele encomenda
o Livro de Bolso do Carpinteiro, o Manual do Vidraceiro
e o .
Num momento como o nosso, em que somos atazanados
por um bando de palpiteiros ensandecidos, que manifestam permanentemente
os próprios pensamentos, Rimbaud recorda as infinitas virtudes
do silêncio. Ele é um modelo para todos nós.
Ele é um modelo para o presente. Em suas cartas, Rimbaud
mostra que temos poetas simbolistas de mais e carpinteiros de menos.
Ele mostra que temos poetas simbolistas de mais e vidraceiros de
menos. Eu pergunto: já encomendou seu Livro de Bolso do
Carpinteiro?
revista VEJA
06/02/2010
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