RAZÃO E RELINCHOS
COLUNISTA ESTREIA NA FOLHA DE S. PAULO COMENTANDO
O LIVRO
"COMO VENCER UM DEBATE SEM PRECISAR TER RAZÃO"
Michel Laub
Existe um livro de Schopenhauer chamado "Como Vencer um Debate
sem Precisar Ter Razão" (ed. Topbooks). Um dos riscos
de escrever uma coluna de jornal hoje, ou de opinar em qualquer
instância pública, é o oposto: ser ignorado,
quando não perseguido e açoitado num pelourinho de
grunhidos, relinchos e cacarejos, a despeito da mais cuidadosa argumentação.
Convencer alguém a mudar de ideia não é algo
comum em nosso tempo. Basta uma semana nas redes sociais para perceber:
militantes pró e contra aborto, descriminação
da maconha, eutanásia, cotas, cabras e sobrenomes Guarani-Kaiowá,
a maioria está ali para confirmar certezas prévias
ou se irritar com quem diz o contrário.
Uma radicalização que
também nasce do meio: para que os palpites sejam ouvidos
entre tantas vozes, a tendência é que o adjetivo prevaleça
sobre o termo exato, a ênfase sobre a ponderação,
as regras generalizantes sobre as nuances que tiram a graça
e o colorido das frases e slogans.
Renato Parada
Divulgação
Num cenário assim, não é
difícil adotar um tom nostálgico ou apocalíptico.
Talvez se possa lamentar o fim de uma suposta era de ouro dos debates
elevados. Prefiro seguir
achando que a humanidade não mudou tanto: apenas passamos
a ouvir, graças a uma tecnologia muito mais benéfica
que perniciosa, que criou possibilidades infinitas de compartilhamento
de informação, as conversas antes restritas a botecos.
É um choque descobrir que amigos são tão ignorantes,
levianos ou idiotas, claro, mas até isso tem seu lado positivo.
De certa forma, estamos diante
de um problema das democracias maduras, que já superaram
-ou deviam ter superado- questões graves referentes à
liberdade de discurso. Ou seja, não estou falando da lei,
que proíbe censura, calúnia, injúria e difamação.
Nem da ética, que repele a desonestidade intelectual sem
que seu autor precise ir para a cadeia. Estou falando é de
etiqueta, a "pequena ética" que em sua face menos
elitista propõe tolerar os modos alheios -um caminho para,
quem sabe, prestar atenção ao que eles representam.
Isso porque linguagem e tom
-que são maneiras de segurar os talheres num debate- nem
sempre arruínam as ideias por terem aparência tosca.
Dá um pouco de cansaço, por exemplo, quando bikers
defendem suas propostas para o trânsito com tamanha agressividade.
Ou quando a pecha de "fascista", misturada à teoria
política da salmonela, aparece na discussão sobre
bisnagas de plástico proibidas em feiras e lanchonetes. Ainda
assim, tudo a favor de ciclovias e meios alternativos de transporte,
e abaixo aqueles saquinhos tristes de ketchup e mostarda.
Num ensaio de 2005, um nome
insuspeito quando o tema é a consequência das palavras
-Salman Rushdie, que passou anos escondido por causa de um livro
considerado blasfemo pelo Irã- escreveu: "Na Universidade
de Cambridge, me ensinaram (...) que não se deve ser grosseiro
com a pessoa com quem se discute, mas se pode ser extremamente grosseiro
em relação a tudo que ela pensa". Parece uma
citação descabida num texto sobre etiqueta. Na verdade,
é a lembrança de uma regra ideal em debates: deveria
importar o que é dito, e não quem diz. É o
que impede um interlocutor de ser desqualificado por gênero,
crença, classe ou etnia.
Forçando um pouco a
boa-fé, por que não abstrair também o partido
em que o interlocutor vota, a empresa jornalística onde trabalha,
os amigos que tem? Ou suas deficiências retóricas,
sua ingenuidade, sua queda pelo vitimismo, pelo sentimentalismo,
pelo insulto? A distinção total entre texto e autor
é utópica, e o conteúdo de uma ideia pode ser
indistinguível de sua forma, e às vezes tudo se resume
mesmo a interesse ou tolice, mas o esforço para enxergar
um pouco além disso é sempre virtuoso. Pensar com
liberdade, o melhor atalho para identificar o lado certo numa disputa,
passa por ouvir e aprender com vozes dissonantes. Mesmo que o timbre
delas seja mais frequente em zoológicos, penitenciárias
e hospícios.
Michel Laub é
escritor e jornalista. Publicou cinco romances, entre eles "Diário
da Queda" (Companhia das Letras, 2011). Escreve a cada duas
semanas, sempre às sextas-feiras, na versão impressa
da "Ilustrada".
Sexta-feira, 7 de dezembro de 2012
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