NÊUMANNE E OS TERMIDORIANOS
Roberto Romano*
O livro de José Nêumanne Pinto, O que sei de Lula
(Topbooks), ajuda a reflexão ética e política.
As suas páginas ultrapassam a figura do suposto pai da Pátria.
Elas narram, em surdina, o golpe político encenado pelos
que se abrigam no Partido dos Trabalhadores e em agremiações
similares. Nêumanne traça um retrato fiel do proprietário
no condomínio petista. Os fatos brotam diante de nossos olhos
e têm como base a experiência pessoal do autor e documentos
ou testemunhos de pessoas que seguiram a carreira do líder.
O seu relato segue o preceito de Tucídides e Tácito:
nada adiantar sem provas e, sempre, manter a isenção
de ânimo.
O livro narra as agruras, as idiossincrasias,
as matreirices do personagem que, ainda hoje, governa o Brasil.
A cada instante fica bem claro que a cadeira da Presidência
da República é ocupada por certa personalidade vicária,
à espera de um retorno triunfal, em 2014, do verdadeiro dono.
Tudo indica a prática de um império de tipo cesarista:
populismo, propaganda, cargos e recursos públicos em favor
de um homem. Temos aí a face visível da tragédia.
A escondida indica o oportunismo das esquerdas, que, para chegarem
ao poder, jogaram às urtigas ideologias, programas, posturas
éticas.
Na história política moderna, este
não é o primeiro golpe da esquerda para garantir aos
seus líderes as benesses palacianas. Um intelectual insuspeito,
porque fiel à ideologia, Alain Badiou prova que o Termidor,
quando acabou a Revolução Francesa, se deveu aos jacobinos.
"Os termidorianos históricos não são aristocratas,
restauradores, ou mesmo girondinos. São as pessoas da maioria
robespierrista na Convenção" (1). Os partidários
do Incorruptível – apelido de Robespierre – aboliram
as teses revolucionárias. "Meditar sobre a corrupção",
adianta Badiou, "com certeza não é inútil
hoje. (...) Sylvain Lazarus mostrou que ‘corrupção’
designa inicialmente a precariedade política, ligada ao seu
princípio real subjetivo (a virtude, os princípios).
E depois, como resultado, vemos a corrupção material.
Um termidoriano, em sua essência política, é
um corrompido. O que significa: um aproveitador da precariedade
das convicções (e das vontades). Aliás, os
termidorianos históricos são, o dossiê é
claro, corrompidos no sentido usual". Primeiro os valores éticos
são alardeados, depois eles se transformam, na metamorfose
ambulante, em "bravatas".
Após anos proclamando a virtude, a facção
jacobina decidiu melhorar sua vida rifando os antigos ideais? Negativo.
A corrupção não caiu nas hostes da esquerda
de repente. A historiografia da Revolução Francesa
evidencia, com documentos e relatos de vida, a maneira como líderes
"puros" e "inflexíveis", que usavam a
guilhotina contra adversários, se foram apropriando desde
cedo da riqueza pública em proveito pessoal. Quem deseja
se informar leia o dossiê, publicado por Michel Benoit, 1793,
a República da Tentação, um Caso
de Corrupção na Primeira República (2).
O autor narra a odisseia de Claude Bazire e seus pares, todos da
ala radical esquerdista. Um caso basta: em 1792 foi roubado o armário
com joias da antiga Coroa francesa. "O ministro Roland, ao
informar a Assembleia sobre o roubo, tinha apontado com o dedo os
verdadeiros responsáveis: a Comuna Insurrecional e o Comitê
de Vigilância, do qual Bazire e Chabot eram integrantes, mas
ele não denunciou os verdadeiros culpados, por insuficiência
de provas..." (3). As estripulias dos "puros" aumentaram
com a impunidade, até que eles foram condenados por corrupção.
O exemplo francês teve antecedentes de
corrupção e voracidade de poder na Revolução
Puritana da Inglaterra, no século 17. Os radicais exigiam
que os governantes e juízes prestassem contas à cidadania
dos recursos humanos e materiais sob sua responsabilidade. Falamos
da famosa accountability. No entanto, com o avanço
do movimento, a morte do rei, os cargos de mando serviram como aperitivo
saboroso para os que se designavam santos incorruptíveis.
John Milton, o poeta revolucionário, bem antes que morresse
a República ditatorial inaugurada por Cromwell, desencantou-se
com os líderes corrompidos. E veio a trama do monumental
poema O Paraíso Perdido. Os comandantes revolucionários
são retratados como anjos caídos. Em vez de libertar
os ingleses, eles, radicais, fizeram o contrário de Moisés,
pois instalaram um pandemônio de servidão como se levassem
o povo eleito de volta ao Egito... Maiores informações
podem ser lidas no insuspeito historiador, porque marxista, Christopher
Hill (4).
Quem se corrompe e renega ideais costuma apelar
para o realismo político. Mas o cacoete maquiavélico
é confissão de algo sinistro: a hipocrisia disfarçava,
sob os rostos imaculados e as falas virtuosas dos supostos jacobinos,
o vulgar oportunismo. A traição dos militantes e líderes
da esquerda ao seu discurso anterior não muda o fato brutal,
a ganância pelo poder a qualquer custo. Sem a corrupção
ética da esquerda, o sr. da Silva não teria a força
que lhe garantiu o Planalto duas vezes e, mesmo, o conduzirá
à Presidência em 2014. Lúcido Elias Canetti:
"Nunca vi um homem vituperando contra o poder sem o secreto
desejo de possuí-lo". Os hipócritas jamais perdoarão
a José Nêumanne Pinto o seu ato, corajoso ao extremo,
de rasgar a máscara da virtude ostentada no passado por quem,
hoje, elogia a desfaçatez como artifício político.
Ler as páginas desse livro é um exercício de
lucidez histórica.
(1) “O que é um termidoriano?”, no livro editado
por C. Kintzler A República e o Terror (Paris, Kimé,
1995).
(2) Paris, L"Armançon Ed., 2008.
(3) Benoit, página 61.
(4) Milton e a Revolução Inglesa (Penguin, 1979).
* Filósofo, professor de ética
e filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é
autor, entre outros livros, de O caldeirão de Medeia
(Perspectiva).
Publicado na página de Opinião de O Estado de S.
Paulo em 26.08.2011
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