O MAPEADOR DA CULTURA
Crítico que primeiro falou no Brasil sobre
Kafka, o austríaco Otto Maria Carpeaux tem reunidos ensaios
e prefácios publicados entre 1946 e 1971
Alcir Pécora
O projeto de publicação da obra
integral de Otto Maria Carpeaux, cujo primeiro volume reunira seus
seis livros de crítica literária, prossegue agora
com o lançamento de "Ensaios Reunidos - 1946-1971",
coordenado por Christine Ajuz, que traz 205 artigos dispersos em
suplementos literários de jornais, como "A Manhã",
"O Jornal" e "O Estado de S. Paulo", além
de três prefácios.Co-editor das enciclopédias
Barsa, Delta Larousse e Mirador; autor de obras de referência
como "História da Literatura Ocidental", "Bibliografia
Crítica da Literatura Brasileira" e "Uma Nova História
da Música", o vienense Carpeaux foi autor prolífico
no Brasil, onde chega em 1939, e antes ainda, quando, judeu converso
ao catolicismo, escreve a favor da independência da Áustria
diante da Alemanha nazista. O melhor estudo de sua obra deve-se
a Mauro Ventura: "De Karpfen a Carpeaux - Formação
Política e Interpretação Literária na
Obra do Crítico Austríaco-Brasileiro", lançado
pela Topbooks em 2002, criteriosamente referido na esclarecedora
introdução do poeta e amigo Ivan Junqueira.
A pergunta óbvia a fazer é: qual o interesse de ler
Carpeaux hoje? Para respondê-la de maneira não-burocrática,
será preciso deixar de lado o simples registro cronológico
de que foi o primeiro a escrever no Brasil sobre inúmeros
artistas - entre eles, Kafka e Vermeer - para ir logo ao núcleo
de articulação de suas "crônicas literárias".
Para ele, a literatura é um domínio coeso, no qual
paisagens históricas longínquas mantêm ligação
com o que há de mais novo na cultura.
Com base nessa compreensão de que o presente
modifica o passado tanto quanto é movido por ele, Carpeaux
supõe que o crítico deva agir como o encarregado de
organizar o mapa de uma Terra em movimento contínuo, observando
cuidadosamente novas possibilidades de leitura de obras antigas
bem como linhas da tradição capazes de sustentar obras
recentes.
Há aqui muito da noção de "fenômeno
da cultura", de Eliot, mas sobretudo certas concepções-chave
de Croce, que Carpeaux entende ser o maior crítico do século
20. Entre elas, a de que os dados biográficos não
dão conta dos sentidos da obra ou a de que os conteúdos
racionais - a filosofia - não são o supremo fim da
literatura, pois isso significaria o sacrifício dos elementos
emocionais e imaginários, para cuja expressão a literatura
é imprescindível.
Ressaltar limites
Não se trata de renunciar à análise
da obra, pois os motivos irracionais presentes nela se revelam sempre
na "forma literária", a ser examinada de maneira
"completa", em termos de coerência interna e externa,
e de seu poder de convicção. Assim, Carpeaux tende
a ressaltar tanto os limites do "classicismo", entendido
como restrito às normas de "conveniência"
artística, quanto os da análise sociológica,
que pode dar conta das condições de aparecimento da
obra, mas não de sua qualidade, e, em particular, os limites
da dialética materialista, cuja dificuldade para lidar com
a interpretação de valores que sobrevivem depois de
desaparecer as condições que os criaram é manifesta
já ao próprio Marx.
Além disso, a idéia de uma obra
de arte inserida num continuum de cultura, que suscita uma "ciência
geral das expressões", sem separação entre
as artes, como queria Croce, torna Carpeaux especialmente hostil
ao que chama de "falso heroísmo da incompetência
especializada". Especialistas em artes parecem-lhe tão
falsos quanto "heróis profissionais da revolução",
a quem faltava a decência do diletante.
Em particular, a universidade, enquanto "universitas
litterarum", teria de estar acima do "especialismo míope"
para atingir o verdadeiro "espírito universitário",
que não se satisfaz com a transmissão de noções
consagradas para formar especialistas, quando não publicitários
- isto é, especialistas no emprego de slogans partidários.
Em favor da mesma visão de inserção e abrangência
cultural, Carpeaux prefere, ao determinismo unilateral do romance
naturalista, a técnica mais sutil de "vários
planos que se iluminam reciprocamente", a escolha da "nuança
estilística conforme o aspecto da vida", composta de
"realidade e ficção", "de ordem e aventura",
num "perspectivismo" que admite a verdade parcial em todas
as diferentes formas de vida.
Por isso, também a grande poesia é
a que nunca diz tudo. Ou melhor, o que ela diz depende das franjas
sentimentais de seu núcleo racional, intraduzíveis
em prosa, e que, pela "ambigüidade" que lhe é
essencial, tem sempre a capacidade de suportar renovadas interpretações
ou, como na fórmula de Eliot, "novas maneiras de errar".
É a ambigüidade que fornece igualmente a forma do "mistério"
da obra, cujo fundamento psicológico está na liberdade
de decisão do autor, em luta contra todos os determinismos.
Tal movimento das coisas em arte é inimigo
implacável dos modernismos, tornados rapidamente em antiqüismos;
bem como, no lado oposto, do romance histórico e do romance
de emigrantes, inexoravelmente falsificados pelas teorias do passado
introduzidas pelos autores.
Na direção oposta, para o crítico,
o fenômeno total da cultura é profundamente afim do
que nomeia pela noção de "barroco", que
nada tem a ver com o que -eu, pelo menos- julgaria mais próprio
dela, a alegoria, reduzida por Carpeaux a correspondência
mecânica de invenções metafóricas a fatos
ou idéias.
"Estilo da velhice"
No "barroco", Carpeaux busca o que
ele supõe ser o seu núcleo "simbólico",
cujas imagens fantásticas não admitem correspondência
imediata com a realidade, dando margem a significações
mais amplas e interpretações diversas. À noção
de "barroco" também faz corresponder o "estilo
da velhice", no qual o artista se encontra só numa época
que despreza, tendendo então ao hermetismo, ao descaso da
técnica, ao repúdio do realismo, à eliminação
das contingências e à imaterialidade.
Não repito tais categorias, aqui, porque
as adote ou porque julgue boa teoria, mas, ao contrário,
porque os aspectos datados desse pensamento são facilmente
reconhecíveis. Ou antes: porque desse modo fica ostensivamente
demonstrado que a posição teórica anacrônica
não esgota o interesse de ler Carpeaux. Se estamos distantes
do idealismo crociano - ou não? - e se a concepção
romântico-tedesca da arte seiscentista, totalizada na noção
de um "abscôndito" barroco, não passa hoje
de suma banalidade acadêmica e chamariz comercial, a verdade
é que, surpreendentemente, isso não liqüida o
interesse dos seus escritos.
Em Carpeaux, a crítica respira nas analogias
de estrutura e sentido que opera entre as obras, na largueza de
notícias delas, na familiaridade de freqüentação
e, sobretudo, na inteligência aguda que permite fazer "reconsiderações",
isto é, produzir atos de descoberta de qualidades desapercebidas
em contemporâneos ou de redescoberta não de exumação
arqueológica ou memória historiográfica - de
poetas e estilos.
Bastava nos levar por caminhos repletos de apontamentos
de um saber vivamente experimentado para gostar de reler Carpeaux.
Nem seria preciso que, algumas vezes, ao aplicar com mestria os
recursos da disseminação e recolha, da repetição
estratégica de certas metáforas, os ensaios, como
o diz Ventura, parecessem "impregnados de atmosfera de piedade"
e "de meditação religiosa". A leitura de
Carpeaux nos reassegura, hoje, que, ao menos em crítica,
não há nenhuma vantagem nos destinos serem decididos
pelos ignorantes e incultos.
Alcir Pécora é professor de teoria literária
da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina
de Gêneros" (Edusp).
caderno Mais!
FOLHA DE S.PAULO
19/02/2006
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/ coluna de Daniel Piza
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