UMA AVALANCHE DE EVENTOS
O livro de poesias do vice-presidente da República
é um composto de perplexidades e angústias causadas
pelo campo de sua atuação principal: a política
Roberto Damatta
Temos vivido uma avalanche de eventos. Da morte
de Chávez às divergências sobre os royalties
do petróleo, cujas sequelas vão mudar a cena política.
Isso para não falar sobre a renúncia e agora eleição
de um novo pontífice e o rompimento de uma trégua
pela Coreia do Norte. Tudo isso pesa num mundo cada vez menor.
No plano insignificante do cronista, há
a carta insigne que recebi do vice-presidente da República,
o senhor Michel Temer — assinada como Michel Temer —,
reclamando do modo como ele é mencionado na crônica
“Eu não aceito”, publicada em 6 de fevereiro.
O sr. Michel Temer ficou magoado com o que leu
como uma censura à sua poesia. Ora, não é todo
dia que um sujeito que dá aulas, lê, escreve e pesquisa
por mais ou menos 50 anos; um alucinado que andou estudando índios
e que transformou alegrias como o carnaval e futebol em chatices
teóricas; que vive denunciando a amizade e o apadrinhamento
como valores essenciais no mundo público; enfim, um professor,
essa profissão tão valorizada no Brasil, recebe uma
carta acompanhada de três livros de um vice-presidente da
República, uma pessoa superocupada com os problemas nacionais
e com uma trajetória pública invejável. Daí
porque — pela deferência à figura de Michel Temer
e pelo respeito que tenho pelo papel que ocupa (e que a ele não
pertence totalmente) — torno público um assunto relativamente
particular.
Observo que o nome do sr. Michel Temer surge
na minha crônica no papel de poeta. E de poeta hígido
(hígido, para quem não sabe, significa saudável!).
Observo, em seguida, que minha crônica é permeada de
ironia que se manifesta nas imagens que usei para salientar a minha
desilusão com a dinâmica política nacional.
O fato concreto, entretanto, é que jamais larguei coisa alguma.
Muito pelo contrário, estou enfronhado no Brasil e, por circunstâncias
que não inventei, tenho viajado muito mais para dentro do
que para fora de mim mesmo. No momento, estou aprendendo a viver
com menos.
Michel Temer escreve-me discorrendo sobre a sua
vocação poética e explica que somente publicou
seus pensamentos instado por amigos fiéis que, por sinal,
são indivíduos admiráveis. Em seguida, ele
fala de sua trajetória como acadêmico no campo do Direito
Constitucional, cujo sucesso foi inegável, e exprime, não
sem uma boa e justa dose de sarcasmo, o seu ressentimento por eu
ter condenado a sua poesia. Termina dizendo uma verdade: “Talvez
o que o tenha influenciado é o meu lado político.
Duvido que V.S. seja daqueles que desestimulam os ‘calouros’
que se atrevem a impulsionar pelas letras sentimentais”.
O poeta no vice-presidente está certo.
Depois de ler o seu livro “Anônima intimidade”,
percebo sua reação. Michel Temer é um homem
dividido como eu. É um correligionário de letras e
de mediunidade que a política escondeu e que, espero, não
tenha liquidado totalmente. Na carta que ele se dignou a me endereçar,
Michel Temer me situa no Olimpo da vida literária nacional.
Ledo engano, Michel. Eu moro em Niterói e tenho a certeza,
como muitos que criticaram o meu trabalho, que sou um especialista
menor, errado ou superficial, que luta para fechar suas contas praticando
uma antropologia antiga.
Na referida crônica, eu expressava a minha
indignação não contra a sua poesia, mas contra
a posse como presidente do Senado de um político sobre o
qual pesam graves acusações. Um parlamentar que, entre
outros fatos, é um recordista de atos secretos e mesmo assim,
ou talvez por isso mesmo, dava uma aula de “ética”.
Se o poeta Michel Temer reler a minha crônica, ele verá
que o seu nome aparece por ele ser a segunda pessoa da República,
e sua excelência, o presidente do Senado, o sr. Renan Calheiros,
o qual pertence ao seu partido, ser a terceira. Quer se queira ou
não, o vice-presidente faz parte de um governo no qual a
política tem sido descarrilhada por troca de favores e escândalos
que me envergonham — razão do meu desabafo.
Eu não o julguei como poeta, mas testemunhei
pela leitura do seu livro a angústia contida na poesia rascunhada
em papel de guardanapo de avião ao sair de Brasília.
Vejo que é um composto de perplexidades e angústias
causadas pelo campo de sua atuação principal: a política
— justo a dimensão que motivou minha crônica.
Lendo as suas ansiedades, bem posso imaginar a profundeza das consternações
que marcam a sua biografia. No seu livro enxerguei a purgação
que uns poucos podem fazer diante de um quadro político tão,
data vênia, deprimente. Se fazemos em parte o mesmo, como
poderia censurá-lo como poeta? Lamento o mal-entendido e
por ele me desculpo.
Mas gostaria de aproveitar essa ocasião
para dizer como eu gostaria que o seu lado de poeta estivesse mais
próximo do seu lado de político profissional e —
ouso sugerir com índole fraternal — pudesse ouvir esse
seu lado literário com mais frequência. Foi imperdoável
tê-lo ignorado como poeta, e rogo para que sua poesia possa
iluminar — com a agonia e as incertezas de todo poema —
esse nosso Brasil cujo palco político produz dramas tão
calhordas sem nenhum constrangimento.
PS: Aqui fica um convite para um encontro em
minha casa no Olimpo chamado Niterói. Seria um prazer conhecer
pessoalmente o poeta que é vice-presidente da República
e liderança da base governista.
O GLOBO
13/03/13
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