DE POETA A CAÇADOR DE HISTÓRIAS
Adriano Espínola embaralha ficção
e
realidade na prosa de Malindrânia
Marcos Pasche*
Numa entrevista em que falava sobre as narrativas
de Cidades inventadas, o poeta Ferreira Gullar queixava-se
de certo menoscabo da crítica em relação ao
livro, dando a entender que, geralmente, não se confere a
atenção devida ao fato de um versejador lançar-se
pelos caminhos da prosa. Tal preconceito não se formula gratuitamente,
pois há vários casos em que num mesmo escritor os
talentos para cada gênero destoam. Mas esse certamente não
é o caso de Adriano Espínola, poeta de carreira consolidada,
em seu mais recente livro, Malindrânia, que, além
de representar um lance de mudança na forma de sua escrita,
exibe também uma mutação artística do
pescador de poemas que se torna um caçador de histórias.
O próprio livro indica serem relatos os
13 textos que o compõem, sem, no entanto, especificar se
pertencem ao campo biográfico ou literário (aspecto
omitido inclusive na folha de rosto). Se nos basearmos na abertura,
o texto “As cordas do mar”, no qual se vê uma
Ipanema totalmente tomada pelas águas, assinalaremos o caráter
ficcional da obra: “Enquanto as espumas cruzavam as águas,
cheias de som e fuga, decidi mergulhar para ver, naquele trecho,
a cidade submersa”.
Porém, se o poeta é um fingidor,
o narrador também o é, e em muitas passagens teremos
pistas falsamente verdadeiras (ou verdadeiramente falsas) a respeito
da matéria narrada.
É o que ocorre em “Fábula
do anel”, que por um lado apresenta-se pela perspectiva da
criação, mas que por outro lado é pleno de
referencialidade, dirimindo a solidez da fronteira entre o verossímil
e o verdadeiro (aspecto, aliás, mais característico
do romance e do conto contemporâneos). Nesse texto, fala-se
a respeito de um relato colhido pelo poeta cearense Pedro Saraiva
Leão (a respeito de ruínas greco-romanas em Éfeso)
numa antologia editada pelo escritor turco Orhan Pamuk. Tudo leva
a crer que a persona do narrador vem a ser a do próprio Espínola,
o que nos aumenta a sensação de estarmos diante de
uma reportagem particular. No entanto, tal sensação
é turvada por esse mesmo narrador: “Após o exame
e já no final da visita, Pedro mostrou-me algumas moedas
gregas e turcas, estas do século XVIII; depois de discorrer
sobre a singularidade das peças, entregou-me a sua versão
do relato, que aqui vai com algumas poucas alterações”.
Ao lado desse exercício ocasionado pelo
trânsito formal, fazem-se presentes fatores já enfaticamente
trabalhados por Espínola em sua trajetória poética.
Um deles é a presença recorrente do mar e suas simbologias,
ora aparecendo como uma espécie de invocação,
ora formulando-se como direção da fuga do sujeito
engarrafado em meio ao caos urbano e humano: “Sob as águas,
tudo era um silêncio só. Vasto, infinito. (...) Ali,
a minha liberdade era literalmente líquida e incerta, como
as ondas, enquanto o mundo estertorava, espumoso, lá fora,
ou antes – lá em cima”, diz o já citado
“As cordas do mar”.
Outro aspecto muito próprio da literatura
de Espínola e que no livro surge retrabalhado com o frescor
da inovação é sua alteridade de si em si mesmo:
“Que levo de grave? A mim mesmo, clandestino”, diz o
relato “As coisas”. Se um homem não passa duas
vezes por um rio, Espínola navega constante e unicamente
pelo mar também metamorfoseado, como aparece em “O
pão sobre a mesa”: “Em que deserto do tempo fui
eu, sendo outro?”
Apesar das constantes mudanças (formais,
metafóricas ou existências), Espínola não
se desapega de seu veio poético. Dispensando a rotulação
classificatória, seus relatos fazem piruetas literárias,
mas não se restringem a meros joguetes artísticos.
Malindrânia é um livro que não se furta
a pensar o seu tempo, percebendo com grande densidade algumas de
suas claudicações e ofertando, a esse mesmo tempo,
sopros de uma brisa que suaviza o mormaço da vida capitalizada.
*Marcos Pasche é mestre em literatura
(UFRJ).
caderno Prosa & Verso
O GLOBO
16/01/2010
OPINIÃO
“Embora minha imaginação
seja rebelde ao gênero fantástico, em relação
ao livro Malindrânia produziu-se uma espécie
de pequeno milagre. Por inesperados, adorei os contos “A onda”
e “O caçador”, duas pérolas raras, duas
obras-primas. Raramente a força performativa duma escritura
me tem dominado a tal ponto ao engendrar seu poder sedutor. Também
me fascinou “Rebelião”, ao lado de “A cratera”,
este muito bem realizado. Quanto ao último, “Os círculos”,
é um exercício fenomenológico de extrema densidade”.
Didier Lamaison, Paris, 21.12.2009
(Escritor e tradutor francês, sócio correspondente
da Academia Brasileira de Letras)
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