A LONGA VIAGEM DO CRÍTICO
Coletânea de resenhas traz à tona a face universalista
da obra de José Veríssimo
Cláudio Murilo Leal
Professor da UFRJ e poeta, autor de 'MÓDULOS'
Uma
visão panorâmica da crítica literária brasileira que militou entre
o fim do século 19 e o começo do século 20 destacaria, como referência
obrigatória, três nomes que representaram cabalmente aquele importante
momento de transição da nossa cultura: Araripe Jr., Sílvio Romero
e José Veríssimo. Transição da subjetividade romântica para o despertar
de um cientificismo que marcaria o período realista-naturalista
no Brasil. Um quarto nome, o mais velho e o mais criativo de todos,
Machado de Assis, abandonou precocemente a crítica, depois de produzir
lúcidos ensaios, como o definitivo ''Instinto de nacionalidade''.
Araripe Jr. e Sílvio Romero se apresentavam como
instauradores de uma nova crítica e revelavam um marcado caráter
de cunho científico. Imbuídos dos ideais que propugnavam pela objetividade
no tratamento do fato literário, e adotando alguns procedimentos
tomados de empréstimo principalmente das ciências sociais, estes
dois críticos ampliaram o campo de suas investigações, entendendo
a literatura como uma manifestação que devia ser inserida num contexto
mais amplo, que incluía as dimensões do cultural e do social.
A filosofia e a doutrina dos luminares da Europa
do século 19 tiveram ampla divulgação entre nós: o positivismo de
Comte, o determinismo de Taine, o evolucionismo de Darwin, e outros
como Spencer, Heckel ou, mais especificamente literários, Sainte-Beuve
e Zola, compuseram um imprescindível quadro de referências para
quem desejasse entender a literatura como um sistema de trocas no
mercado das novas idéias. Ao lado da vertente cientificista, propagou-se
também um sentimento nativista, não mais voltado para o exótico
indianista, como no romantismo, mas para uma saudável tentativa
de descoberta das nossas diferenças culturais em relação à Europa.
José Veríssimo (1857-1916), sem desprezar esta
abertura do enfoque literário em direção à postura crítica que ampliava
a compreensão do fenômeno cultural, não descurou da valorização
do elemento estético no julgamento da obra literária. Apesar de
autor de importantíssimos livros, que ajudaram a construir a consciência
da nossa nacionalidade, como História da literatura brasileira
e Estudos brasileiros, Veríssimo tem sido vítima da perpetuação
de alguns rótulos contrários ao estilo da sua prosa e ao seu suposto
desinteresse pela literatura estrangeira. Por esse motivo, deve-se
ressaltar a importância do livro que a editora Topbooks traz a lume,
em elogiável parceria com a Academia Brasileira de Letras, intitulado
Homens e coisas estrangeiras.
Nele, estão reunidos os três volumes publicados
em primeira edição entre 1899 e 1908, iniciativa que representa
um oportuno resgate dessa pouco lembrada produção de José Veríssimo.
A faceta universalista da obra do nosso crítico se encontrava de
tal forma relegada que o mestre Afrânio Coutinho, em Caminhos
do pensamento crítico, escreve que o bom-senso de Veríssimo
''lhe compensava a ausência de cultura literária universal.'' Também
Otto Maria Carpeaux, em sua utilíssima Pequena bibliografia crítica
da literatura brasileira, omite este título, Homens e coisas
estrangeiras, no verbete dedicado a José Veríssimo.
Em se tratando de examinar o estilo de Veríssimo,
apesar de não se poder compará-lo ao de Machado de Assis, não é
ele inferior ao de Sílvio Romero, retórico e passional. Um crítico
como Álvaro Lins, hoje fora do circuito da nossa inteligência -
pois ainda é aguardada uma reedição da sua obra -, escreveu, no
terceiro volume da série Jornal de Crítica: ''Pude verificar que
o estilo de Veríssimo se revela natural e agradável, quase direi
belo: um exemplo está na página em que descreve a sua visão de Eça
de Queiroz num teatro de Lisboa.'' Justamente este texto já pode
ser relido, com renovado prazer, pelo leitor contemporâneo, como
um daqueles que compõem Homens e coisas estrangeiras.
Em Veríssimo, a análise da literatura guarda
um lugar privilegiado, como não podia deixar de ser, na obra de
quem foi, primordialmente, um crítico literário. A leitura da presente
reunião dos trabalhos nos aclara, também, sobre a sutil relação
do nosso autor na aproximação da cultura brasileira à européia.
E este processo pode ser acompanhado por intermédio dos ensaios
sobre Anatole France, Chateaubriand, Zola, Victor Hugo, d'Annunzio,
Eça, Dumas, Tolstói, Taine, Sainte-Beuve e outros. A História, os
costumes, os temas sobre raça, cultura ou feminismo inserem, por
outro lado, esses textos numa estratégia de globalização do saber,
que caracterizou a posição dos nossos críticos realistas.
Homens e coisas estrangeiras compõe-se de 70
resenhas, incluindo cinco que foram publicadas, em 1907, em Que
é literatura e outros escritos. A minuciosa introdução de João
Alexandre Barbosa, autor de excelente livro sobre Veríssimo, intitulado
A tradição do impasse, é rica de elementos que levam à iluminação
de textos que necessitam, hoje, para sua compreensão, de uma abordagem
erudita e historicamente distanciada.
Inicialmente publicados na imprensa, os artigos
tratam, em sua maioria, de assuntos da atualidade ou comentários
sobre livros recentes. Por suas qualidades de estilo e de reflexão,
estes textos transcenderam as contingências temporais e passaram
a merecer definitiva preservação, incorporados que foram à nossa
tradição crítica, através do livro. Esses ensaios-resenhas refletem
uma tendência de interpretação dos mundos europeu e americano, formulada
por um intelectual brasileiro. O leque de temas abordados se configura
amplo e revela uma preocupação com a compreensão do Outro, da alteridade
cultural, longe de qualquer sentimento xenófobo.
Um exemplo é o ensaio ''A vida literária nos
Estados Unidos'', que analisa o sistema americano de incentivo à
cultura. Boston, Harvard, a carreira dos professores universitários,
as revistas literárias, as conferências, os poetas, os educadores
literários são ilustrações objetivas do que Veríssimo denomina de
''vitalidade literária dos Estados Unidos''. Textos como ''A França
intelectual'', ''A regeneração da América Latina'', ''A nova Alemanha'',
''O país extraordinário'' evidenciam as preocupações do literato
que atua, também, como cientista social. Alguns ensaios examinam
com argúcia livros que se detiveram sobre figuras da importância
histórica de um Napoleão, Cromwell ou Kropotkin. É o literato que
se apóia em seus conhecimentos de historiador. Outros textos abordam
ainda aspectos da literatura latina, das letras hispano-americanas
e portuguesas. Outros, versam sobre os clássicos: Cervantes, Shakespeare,
Tácito e Petrônio. A lista onomástica de Veríssimo é rica, longa
e variada. Homens e coisas estrangeiras é uma demonstração de que
não nos encontrávamos ilhados espiritualmente em relação aos grandes
centros irradiadores da cultura.
Relembrando que estes trabalhos foram originariamente
publicados em periódicos, antes de reunidos em livro, torna-se importante
registrar a permanente atuação da imprensa na divulgação, ontem
e hoje, de textos de caráter cultural, sempre no intuito de propagar
idéias e democratizar o acesso ao conhecimento. O livro, como veículo
perpetuador da cultura tem, no entanto, seu papel insubstituível,
inclusive resgatando obras de inestimável valor, como a presente
reedição de Homens e coisas estrangeiras, de José Veríssimo.
Idéias
JORNAL DO BRASIL
Rio de Janeiro
01/11/2003
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