EM DEFESA DA PROVOCAÇÃO
Entrevista a Carlos Marcelo
Diplomata de carreira, Felipe Fortuna não
teme o combate travado em praça pública, sem subterfúgios
nem meias-palavras, quando a poesia entra em cena. Poeta com quatro
livros publicados, dedica-se com entusiasmo e convicção
à crítica literária – e não abre
mão de mirar também em seus pares. Bate forte no compadrio
do elogio recíproco, prática recorrente entre escritores.
“Então está combinado: eu escrevo o poema no
domingo e você publica um comentário elogioso no sábado.
A literatura brasileira só acabará quando for abolido
o fim de semana.” Felipe reuniu no livro Esta poesia e mais
outra (Topbooks) alguns dos textos mais contundentes que publicou
no caderno Ideias & Livros, do Jornal do Brasil. Há análises
nada apaziguantes de itens da obra de Armando Freitas Filho, Haroldo
de Campos, Marcus Accioly e Waly Salomão. E também
tentativas de destacar poetas que considera menos valorizados, como
Joaquim Cardozo (“Essa ‘cria melhor’ que o Brasil
ignorou, um herói discreto e silencioso na poesia de João
Cabral de Melo Neto, José Paulo Paes e os versos eróticos
do cineasta Sylvio Back. É o que Antonio Cícero chama,
no prefácio, de “uma série de textos de crítica
literária autêntica e isso, como é notório,
vinha há muito tempo tornando-se cada vez mais raro no Brasil”.
Filho de Fortuna, cartunista homônimo da trupe do Pasquim
e que assinou a arte de diversas capas da Veja nos ano 1970, Felipe
também se dedica a analisar nomes da produção
estrangeira e se permite, em tom de blague, desmascarar as relações
entre os mundos literários britânico e brasileiro no
hilário Stoppard! C’est magique. A seguir, o autor,
que autografa livro na próxima terça-feira no Carpe
Diem da Asa Sul, reflete sobre a crítica literária,
explicita diferenças entre poema e letra de música
e arisca uma definição para o próprio fazer
poético: “Minha poesia é também minha
crítica ao mundo”.
1. O que difere a atividade crítica
da criação literária? É possível
coadunar ambas sem prejuízo?
A atividade crítica demonstra, em geral,
uma atitude de dependência. Ou seja: trata-se de um discurso
sobre uma obra ou sobre um problema. A obra literária é,
portanto, uma plataforma, uma base conveniente sobre a qual surge
a atividade crítica. Dito isso, tudo começa a se confundir:
na obra ficcional de Jorge Luís Borges, por exemplo, há
contos que são necessariamente discursos de um crítico
literário – com belas passagens sobre a memória,
sobre o que uma citação pode evocar. O mesmo acontece
na poesia de João Cabral de Melo Neto, em que a crítica
literária é por vezes a razão de ser do poema.
É muito difícil localizar a fronteira entre criação
e crítica, e existe certamente uma ironia tanto na busca
dessa fronteira quanto na sua definição.
2. Antonio Cicero chama o seu trabalho
de "crítica literária autêntica".
O que diferencia a sua visão da de outros críticos?
Não creio que Antonio Cicero tenha mencionado
"crítica literária autêntica" para
me diferenciar de outros críticos. Ele talvez tenha pretendido
salientar o fato de que a minha crítica faz comparações,
cita os textos literários e julga as obras. Como se sabe,
a opinião é um artigo raro na vida cultural, em especial
na literária. O que mais se percebe é o depoimento
fraterno, a concessão a uma interminável mediocridade,
o relativismo no lugar da escolha. É nesse sentido que entendo
a crítica autêntica: quando a crítica toma posição.
3. Como funciona o "sistema endogâmico
na produção e na divulgação da poesia"
no Brasil? Existe paralelo com o que acontece em outros países?
O sistema endogâmico já fora denunciado
por um bom poeta e crítico, Mario Faustino, ainda na década
de 60. Como o mercado de poesia nunca aumenta (e pode até
diminuir), é claro que o elogio mútuo e a cumplicidade
fraterna aparecem como tábuas de salvação dos
poetas que pretendem influenciar. O fenômeno é brasileiro
na medida em que se aproxima dos nossos vícios de formação
social, como o do homem cordial, do afilhado, do agregado etc. Mas,
infelizmente, o problema não está restrito ao nosso
país. Um crítico norte-americano, Dana Gioia, já
escreveu sobre a irrelevância da poesia justamente ao comentar
os maus hábitos de alguns poetas, que só se comunicam
entre si e organizam revistas e antologias sob o critério
do oportunismo grupal.
4. A crítica aberta e contundente,
no Brasil, ainda é vista como ofensa pessoal?
Creio que sim, tal como ocorre na política:
o debate de idéias é compreendido como ataque, quando
o oponente exige respeito... Muitos dos poetas que consideram escrever
uma "poesia do rigor" - algo como ser ortodoxo em relação
a princípios artísticos - acabam sendo paternalistas
e cordiais com os seus adeptos e seguidores. Imitam, assim, o que
há de pior na ordem política, e negam a idéia
mesma de arte e criação.
5. Que poetas ou quais livros, em sua opinião,
são supervalorizados pela crítica nacional e quais
não recebem (não receberam) a atenção
devida?
É sempre fascinante rever o cânone
e encontrar, por exemplo, Sosígenes Costa e Joaquim Cardozo,
entre os mais modernos, que ainda precisam de maior atenção
crítica. A minha crítica literária tem, de
fato, buscado ponderar sobre poetas que ganham maior visibilidade
- como, recentemente, Armando Freitas Filho e Haroldo de Campos
-, e aqueles que ainda deverão alcançar maior espaço,
como Sylvio Back, ótimo poeta erótico, e Luis Dolhnikoff.
Creio que é a maior contribuição de um livro
como Esta Poesia e Mais Outra: provocar um contraste na recepção
dos livros de todos esses poetas.
6. Por que a confusão entre
"letra de música" e "poema"? É
uma distorção exclusiva do Brasil? Quais as consequências
dessa distorção?
Quando debatemos as identidades e as diferenças
entre "letra de música" e "poema", estamos
também debatendo um complexo problema cultural do Brasil:
por que um país reconhecidamente famoso por seu cancioneiro
popular, sobretudo a partir da Bossa Nova, exibe uma literatura
tão desconhecida e de tão pouca circulação?
O baixo índice de leitura dos brasileiros talvez explique
parte do problema: deixamos para a cultura oral, para a forma de
articulação entre poema e melodia, as nossas criações
mais populares. O passo seguinte me parece desastroso: em muitos
livros escolares, os educadores pretendem apresentar compositores
no mesmo nível de Carlos Drummond de Andrade ou João
Cabral de Melo Neto quando tratam de literatura! Ninguém
confunde, no Reino Unido, autores como Paul McCartney e Bob Dylan
com a tradição literária de T.S. Eliot ou Philip
Larkin. No Brasil, ignora-se de propósito a diferença
absoluta entre a recepção de um letra de canção,
fenômeno do mercado, e do poema, que sempre exige um tempo
diferente para seu consumo... Tudo relacionado ao pouco prestígio
da palavra escrita entre nós...
7. Em meio ao cenário por você
traçado, qual deve ser o papel da crítica literária?
E a quem ela se destina?
A crítica literária precisa ser
provocadora e debater a comparação entre autores e
obras. Não pode ser, por isso mesmo, praticada apenas pelos
amigos dos escritores e por quem prefere ser simpático em
vez de opinar. Os poucos jornais que, no Brasil, ainda mantêm
suplementos literários às vezes exageram na publicação
de resenhas inócuas e descritivas sobre um autor. A meu ver,
desrespeita-se o leitor quando um artigo não contém
opinião ou um posicionamento crítico facilmente identificável.
Mesmo quando se trata de um texto acadêmico não destinado
ao jornal, o que mais interessa é a hipótese de interpretação
e a análise.
8. O que o levou à análise aprofundada
da letra de "Coração Materno"?
A canção de Vicente Celestino foi
lançada em 1937 e, desde então, surpreende pelo tema:
o matricídio. É uma canção dramática
e kitsch, que Caetano Veloso regravou nos tempos do Tropicalismo
para, justamente, demonstrar o que o seu movimento tinha deixado
para trás. No entanto, a oposição entre o amor
eterno da mãe e o amor egoísta da noiva me pareceu
um tema transcendental da poesia. Fui buscar as fontes da canção
e não deu outra: descobri que estava baseada numa lenda francesa
medieval, que por sua vez influenciou vários poetas europeus,
entre os quais um húngaro e um russo, cujos poemas traduzi
no meu livro. Foi uma descoberta e tanto para mim, que agora tenho
o prazer de dividir com meus leitores.
9. Chegou ou já passou da hora
de se preocupar com o "leitor desamparado", para citar
uma expressão utilizada no trecho final do livro?
Quando menciono o "leitor desamparado",
quero fazer referência às diversas classificações
da literatura: literatura gay, literatura feminina, literatura racial...
Será mesmo possível que existam essas literaturas?
Então quem cuidará do leitor, submetido a todas essas
correntes sem sequer compreender a idéia mesma de literatura?
No fundo, como sabemos, estamos à procura da beleza e da
provocação estética diante de um quadro ou
de um ária de ópera. Não adianta compartimentar
a arte segundo os preconceitos do dia, e deixar o espectador, o
ouvinte ou o leitor desamparado diante da informação
que não transmite uma emoção estética.
A minha preocupação com o assunto continua, ainda
mais agora, quando as linguagens eletrônicas tornam tudo mais
rápido e menos reflexivo.
10. Como a sua própria poesia
se insere no panorama contemporâneo nacional? O que o crítico
Felipe Fortuna diz sobre ela?
Como já publiquei quatro livros de poemas,
tenho condições de conhecer a minha poesia por meio
da sua recepção crítica. Seguramente acredito
que não é uma poesia do tipo conservador, embora tenha
interesse em prolongar o diálogo com tradição
literária. Sinto falta de maior diálogo com os poetas
da minha geração, talvez porque goste de ler cartas
dos escritores que, ao menos no passado, expunham suas perplexidaes
e suas escolhas artísticas. No fundo, sei que minha poesia
é também a minha crítica ao mundo, a minha
forma de resistir e de me humanizar cada vez mais.
caderno Pensar
CORREIO BRAZILIENSE
04/12/2010
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