FORA DA ORDEM
Rafael Cariello
"Por que pretendemos ser mais modernos que
os supostos modernos, aqueles que inventaram a modernidade?"
A questão, proposta pelo antropólogo
Otávio Velho, 65, professor emérito do Museu
Nacional, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), pode
servir para amarrar boa parte dos artigos reunidos em seu novo livro,
"Mais realistas do que o rei –Ocidentalismo, religião
e modernidades alternativas" (Topbooks, 383 págs.,
R$45,90).
Parte da resposta é que no Brasil, como
em vizinhos latino-americanos, foram construídas "modernidades
de redoma", ele diz, que serviam ao final para distinguir e
estabelecer hierarquias sociais. Resultado de resto oposto ao objetivo
manifesto da modernidade, que seria o do estabelecimento da igualdade
entre os indivíduos e da impessoalidade da lei.
Uns, os que foram à universidade, os brancos,
os que não misturam política e religião, os
que defendem a "pureza" quase imutável das instituições,
estariam, esses modernos, dentro da redoma. Do lado de fora, os
outros de sempre.
A novidade, para o antropólogo, é
que por toda parte essa "modernidade de redoma" parece
apresentar sinais de crise, e as distinções já
não são tão seguras. Algo que se manifesta
na proliferação de universidades particulares –
mesmo que de má qualidade- e na discussão sobre as
cotas, por exemplo.
"A 'modernidade de redoma' está
em crise"
"Mérito" na universidade,
diz Velho, se deu "às custas da expulsão de parte
da população"
"Por que só se pode falar
em raça na hora de discriminar, e não na hora de combater
a discriminação?", questiona Velho, defensor
das cotas
Na entrevista a seguir, Otávio Velho fala
sobre o modo reverente como lidamos com as instituições
da modernidade, "como elefantes numa loja de cristais",
a ponto de tornarmos a democracia engessada e menos eficiente.
FOLHA - Como é que se relaciona o estudo
da modernidade entre nós, brasileiros, e a defesa que o sr.
fez da monarquia à época do plebiscito, em 1993, de
que trata no livro?
VELHO - Na época em que foi proposto
o plebiscito, me chamou a atenção como é que
entre pessoas bem pensantes, intelectuais, e mesmo além desse
círculo, na população em geral, a monarquia
ficou sendo associada ao atraso, a uma coisa "pré-moderna",
a uma coisa "fora do lugar".
Observando, na verdade, o que acontece no mundo
contemporâneo, não se pode dizer que os países
que são republicanos são mais avançados ou
modernos que os países monárquicos. Basta você
se lembrar do Reino Unido, da Espanha. Então esse negócio,
de alguma maneira, me ajudou a pensar mais sobre a modernidade entre
nós. "Mais realistas que o rei".
Nesse caso, por que pretendemos ser mais modernos
que os supostos modernos, aqueles que inventaram a modernidade?
Essa era a questão para mim. Pode-se falar também
que havia aí, nesse caso, uma espécie de reificação
da modernidade. Ela, hipostasiada, retirada de seu contexto, e colocada
em abstrato. E nós, até por um certo sentimento de
que temos alguma falta, alguma falha em relação a
ela, seríamos obrigados a ser mais modernos do que os modernos,
talvez para mostrar, digamos assim, nossa aliança com a modernidade.
Vira então um anátema falar em
monarquia. Minha participação no plebiscito foi, portanto,
e de certo modo, performática. Por ela, tentava desnaturalizar
essa questão para tentar ajudar as pessoas a pensarem de
uma outra maneira.
FOLHA - O sr. trata esse "ocidentalismo"
no Brasil, essa fome de modernidade, como algo que foi usado durante
muito tempo como um fator de distinção. Alguns têm
acesso a ela, que se torna então uma espécie de "bem
de luxo". É isso?
VELHO - Exatamente. Nessas situações,
em países como os nossos – estou pensando no Brasil,
mas também em vizinhos latino-americanos –, é
como se você tivesse que criar uma modernidade de redoma às
custas da discriminação com os não-modernos
internos ao país. Que é um pouco o que a gente vê,
por exemplo, na defesa da universidade. Os princípios de
igualdade e de mérito na universidade se dão às
custas da expulsão ou do não-acesso a ela de boa parte
da população. Era assim. Agora creio que está
começando a mudar. Até de uma maneira que é
diferente das que imaginávamos, quando começam a surgir
essas faculdades particulares que proliferam por aí. Ficamos
um pouco assustados, mas é uma forma até um pouco
perversa de irem surgindo soluções para uma situação
insustentável.
Essa modernidade de redoma é algo que
podemos associar até às imagens do colonialismo. Quando,
por exemplo, você tem o chá das cinco entre os colonizados
da Índia às custas do que acontece do lado de fora
dos palácios. É como se entre nós se revelasse
esse lado oculto da modernidade, que é o colonialismo. Hoje
muitos tentam pensar como ele é constitutivo e até
instaurador da modernidade. Uma coisa que os europeus, de muitas
maneiras, ocultaram; e que aqui, para bom entendedor, se revela,
quase que em forma mesmo de caricatura.
FOLHA - Isso se parece, em muitos momentos,
com o que diz o Roberto Schwarz sobre o uso ostentatório
de "bens" de cultura no século 19, no Brasil escravocrata.
VELHO - Sem dúvida nenhuma. Acho
que a intuição do Roberto Schwarz se mantém
e se estende ao século 20. Ela nos ajuda a pensar hoje em
dia.
É interessante como no Brasil os
arranjos institucionais que herdamos dos EUA e da Europa são
reificados. Ninguém pode mexer em nada! É como se
estivéssemos numa loja de cristais. Nada pode ser mexido.
Coisas que os americanos e europeus não precisam fazer. Talvez
eles prestem menos homenagens retóricas à democracia
e a vivam, por isso mesmo, mais plenamente.
Aqui qualquer proposta de mudança de cenário
institucional é imediatamente barrada. Não lidamos
com essas coisas com naturalidade. É como o estrangeiro que
aprende uma língua e não consegue nunca dominá-la.
Acaba falando mais corretamente a língua do que o nativo
o faria.
A modernidade, nos modelos, supõe uma
separação muito grande entre os domínios –economia,
religião, política, tudo muito separado. E é
como se no Brasil nós tivéssemos dificuldades em realizar
essa separação entre domínios. Hoje fico pensando
se essa dificuldade também não ajuda a revelar uma
dificuldade que não é só nossa, e que não
é necessariamente uma dificuldade.
Imaginamos que há um problema, por exemplo,
quando começa essa história de evangélicos
na política. Estão misturando religião com
política! Ora, não se mistura religião com
política na Europa e nos EUA? Claro que sim. Nós é
que inventamos que não podemos misturar. Nem conseguimos
lidar com isso. Somos contra.
Não queremos enxergar. Isso é impossível
ou inaceitável. É preciso reconhecer que essas coisas
existem e assim lidar melhor com elas.
Como essa história dos lobbies. Não
podemos ter lobbies! Mas, ora, eles estão aí. Não
é melhor reconhecê-los e regulamentá-los, como,
aliás, os americanos fazem?
FOLHA - Lida-se com a modernidade assim porque
ela é "importada" ou isso tem lógica dentro
do país?
VELHO - O que me interessa mais é
como esse "horizonte colonial" funciona entre nós.
Há grupos sociais entre nós, sobretudo nas elites,
que incorporam isso. Por que acontece dessa maneira? Uma pista possível
é a criação de distinções hierárquicas.
Mas também nós fomos, sim, colonizados. Existe um
modo de olhar o mundo que se impõe. Ele escanteia alternativas,
outras maneiras de olhar o mundo – e daí nossa dificuldade
em pensar alternativas.
FOLHA - E as cotas? Elas têm a ver com
a crise dessa modernidade de redoma?
VELHO - É um terreno de paradoxos
interessante. As pessoas que são contra as cotas se perguntam:
como que essa idéia de raças, que é justamente
uma invenção colonial que nós queremos esquecer,
vai ser agora utilizada pelos supostos colonizados? O que se devia
querer não é justamente que não se fale mais
de raças?
Mas eu pergunto: por que só se pode falar
em raça na hora de discriminar, e não na hora de combater
a discriminação? É na hora de combater a discriminação
que vocês descobrem que não existe raça? A novidade
é que esses instrumentos, que eram utilizados pela classe
dominante, hoje passam a ser utilizados pelos dominados.
FOLHA - É como se o sr. dissesse que
as raças já foram feitas, e que não dá
agora para negá-las?
VELHO - Sim. Essa não é
uma questão da "Ciência", com "c"
maiúsculo, mas sim uma questão política. De
alguma maneira, como fato social, elas estão aí. Não
só foram feitas, como continuam a ser feitas. É um
negócio interessante. Fazia parte de um certo pensamento
moderno dividir o mundo entre as coisas reais e as coisas construídas.
Hoje a insistência é em que uma coisa pode ser real
e construída ao mesmo tempo.
FOLHA - Há mudanças nessa forma
de a sociedade brasileira se relacionar com a modernidade?
VELHO - É talvez possível
dizer que a modernidade de redoma está em crise. Não
está mais conseguindo construir as suas redomas, que de certa
forma criavam um espaço privilegiado e garantido. A solução
com mundinhos fechados já não se sustenta. Isso cria
uma época de muita turbulência, aparentemente de caos,
mas também muito interessante.
caderno 'Ilustrada'
FOLHA DE S.PAULO
07/04/2007
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