UM AMANTE DA ARTE, OBCECADO PELO TRABALHO
José Mario Pereira
O editor José Mario Pereira, no ano de 1992,
surpreendeu o jornalista Roberto Marinho com um presente inusitado.
Depois de vários almoços com o presidente das Organizações Globo
e de encontros informais, seja no escritório do jornal ou na Rede
Globo, José Mario foi montando uma entrevista, com o objetivo de
retratar Roberto Marinho da forma a mais humana possível. Ao fazer
uma detalhada pesquisa em documentos arquivados no jornal, reunindo
ensaios para editar o livro “Uma trajetória liberal”— que já fazia
parte da campanha do jornalista para alcançar a imortalidade na
Academia Brasileira de Letras, que exige a autoria ao menos de um
livro — o dono da Topbooks verificou que não havia entrevistas que
revelassem aspectos mais íntimos da personalidade do homem que tanto
ajudou a modernizar a imprensa e as telecomunicações no Brasil.
Com isso, ele decidiu ir aos pouquinhos catando falas e opiniões,
a fim de obter este retrato carinhoso e personalíssimo de Roberto
Marinho, que costumava ser tratado por seus entrevistadores com
muita cerimônia e formalidade, ou seja, de maneira distanciada.
— Eu queria mostrar o que ele lia, o que gostava,
o que fazia, qual era a rotina de seu trabalho. E confesso que,
passados mais de dez anos, nunca vi entrevista igual a minha. Quando
eu a entreguei a doutor Roberto, de tão emocionado ele chorou. E
imediatamente, com o apoio dos filhos, decidiu publicar o texto
na íntegra, ocupando duas páginas brancas do jornal.
Um trabalho tão cuidadoso ainda merece ser publicado,
pois José Mario Pereira, que teve o raro privilégio de privar da
intimidade de Roberto Marinho, realmente está certo. O mito em torno
do grande homem dificultava conhecê-lo de uma forma mais próxima.
Por isso, O GLOBO resolveu publicar hoje trechos desta entrevista,
na realidade uma colagem de várias conversas, ao longo de mais de
cinco anos de convivência. Através dela, o Brasil, que acaba de
perder uma de suas grandes personalidades históricas — um homem
à frente de seu tempo que teve visão suficientemente aberta para
levar adiante seus negócios, divulgar o país no exterior e lutar
pela educação dos despossuídos, através da rede de TV e da fundação
cultural — passa a ficar sabendo que Roberto Marinho era apaixonado
por música clássica, tinha rígida rotina de trabalho, se manteve
ao longo da vida obcecado pelo jornalismo como um repórter iniciante,
leu Balzac, Machado e Eça, foi amigo de Portinari, colecionava quadros
e gostava de teatro. O mecenas das artes e dos artistas era um amante
de todas as expressões criativas do homem. O todo poderoso era sensível.
E, como disse José Mario, não chorou apenas ao ler a nunca antes
imaginada entrevista. “Surpreendentemente, o doutor Roberto Marinho
chorava com facilidade”.
Dr. Roberto, como é a sua rotina diária?
ROBERTO MARINHO: Acordo cedo, leio os jornais e em seguida vou para
o GLOBO. Reservo as tardes para a TV.
O senhor é sempre visto em concertos. Qual a
sua relação com a música?
ROBERTO MARINHO: Tenho uma relação visceral com ela: ouço música
toda manhã. Por parte de mãe tenho sangue italiano e é possível
que venha daí essa afinidade.
O senhor cantarola muitas árias de ópera. Como
foi o encontro com a arte lírica?
ROBERTO MARINHO: Uma das recordações mais caras de meu tempo de
menino foi a forte impressão que me causou ouvir Enrico Caruso cantando
“Cuore ingrato” e “Canta per me”, num disco da Voci Dei Padroni.
Durante anos acompanhei as temporadas líricas no Municipal.
Como o senhor classifica o seu gosto musical?
ROBERTO MARINHO: Em música sou eclético. Gosto dos românticos, em
especial Chopin, Mascagni e Verdi, mas posso também enfrentar, sem
pânico, as muitas horas da Tetralogia de Wagner.
O senhor freqüenta o teatro?
ROBERTO MARINHO: Na minha juventude assisti à montagem de quase
todas as tragédias gregas num teatro armado no Campo de Santana,
no Rio. Culturalmente foi um deslumbramento. Hoje, em função dos
meus muitos afazeres, não tenho ido ao teatro as vezes que desejaria.
Quais os filmes que mais gostou?
ROBERTO MARINHO: Entre os muitos filmes da minha vida estão “Luzes
da cidade” e “O garoto” de Chaplin; “M”, de Fritz Lang, com Peter
Lorre, numa interpretação magistral; “Ladrão de bicicleta” de Vittorio
de Sica; o “Júlio César”, de Joseph L. Mankiewicz, que reúne excelentes
atores, entre eles Marlon Brando, John Gielgud, James Mason e Louis
Calhern, impagável como César. Também vi com prazer quase todos
os filmes de Frank Capra.
E do cinema nacional, o que o senhor viu?
ROBERTO MARINHO: “Limite”, de Mario Peixoto, “O cangaceiro”, de
Lima Barreto, e “Deus e o diabo na terra do sol”, de Glauber Rocha,
são três grandes momentos do cinema.
A pinacoteca do senhor é famosa.Quando começou
seu gosto pela pintura?
ROBERTO MARINHO: Desde sempre. A pintura é uma paixão, assim como
a música. Gosto da arte da Renascença, mas também admiro imensamente
os modernos. Vejo muita criatividade na pintura brasileira de hoje.
Fui amigo de Portinari, por anos a fio freqüentei o seu ateliê,
assistindo, portanto, ao nascimento de muitas obras-primas.
E a literatura, o que ela significa para o senhor?
ROBERTO MARINHO: A literatura é o retrato de um povo, de uma nação.
Sempre li muito. No Brasil, Machado de Assis, tanto o romancista
quanto o cronista, que é exemplar e documenta muito da História
do Brasil.
Da literatura internacional, que autores cultua?
ROBERTO MARINHO: A minha geração foi educada sob o signo da literatura
francesa: Balzac, Anatole France, Flaubert. Um romance que me marcou
muito foi "As aventuras do Sr. Pickwick", de Dickens. Sempre que
me falam dele fico emocionado.
É o romancista Dickens que o fascina, ou este
romance em particular?
ROBERTO MARINHO: É este romance. E digo por que: quando meu pai
se exilou na Legação Argentina, viveu dias de grande angústia pessoal.
Um amigo lhe levou o livro. Eu, que o visitava diariamente, o vi,
muitas vezes, às gargalhadas com as peripécias do romance. Este
livro mudou o seu humor, e desde então sempre que me falam dele,
recordo meu pai e a alegria que "As aventuras do Sr. Pickwick" lhe
trouxe num momento difícil de sua vida.
O senhor gosta de viajar?
ROBERTO MARINHO: Muito, sempre que posso, viajo. É uma maneira de
me reciclar.
Em 1989, a revista francesa “Le Figaro” dedicou
ao senhor uma reportagem na qual o chamavam de "Cidadão Kane do
Brasil". O que achou?
ROBERTO MARINHO: A reportagem era simpática, mas a referência infeliz.
O filme de Orson Welles é um dos clássicos do cinema, mas o personagem
que ele descreve nada tem a ver comigo. São duas trajetórias humanas
distintas.
O que é um bom jornal, Dr. Roberto?
ROBERTO MARINHO: O teatrólogo americano Arthur Miller escreveu certa
vez que “um bom jornal é uma nação falando com seus botões”. Eu
assinaria esta definição.
E o que faz um grande jornalista?
ROBERTO MARINHO: Clareza de exposição, economia de palavras. Mas,
principalmente, apego aos fatos, honestidade e um forte sentido
ético.
Como age o empresário Roberto Marinho à frente
de suas empresas?
ROBERTO MARINHO: Sempre procurei agir com a maior clareza e lisura
em tudo que realizei como empresário e como homem. Sou um obcecado
pelo trabalho. No mundo dos negócios improvisar nem sempre traduz
criatividade. Muitas vezes a improvisação é apenas o primeiro ato
da tragédia.
O senhor assiste às novelas da Globo?
ROBERTO MARINHO: Procuro acompanhar não só a programação da Globo,
mas também a das emissoras concorrentes. Em geral, tomo notas para
depois conversar com meus diretores.
Freqüentemente acusam o senhor de censurar novelas
e programas da Globo. O que tem a dizer a respeito?
ROBERTO MARINHO: Eu sou um democrata, que sempre respeitou a livre
expressão do pensamento e das idéias, mesmo quando elas são inteiramente
contrárias às minhas. Censura nunca exerci. Mas há anos venho imprimindo
no jornal e na TV Globo uma filosofia de clareza e equilíbrio, e
quando entendo que houve desvirtuamento da mensagem do autor na
adaptação de uma obra, ou que em determinada cena de uma novela
ou programa imprimiu-se uma forte carga ideológica em detrimento
da informação e do entretenimento, ou que o telespectador está sendo
agredido nos seus sentimentos morais e religiosos, convoco uma reunião,
exponho os meus pontos de vista e chegamos a um consenso.
Fala-se muito em monopólio da Rede Globo. O que
é isso?
ROBERTO MARINHO: A Rede Globo é constituída por um time de profissionais
de nível internacional. O povo é que liga a televisão na Globo.
Ele é livre para escolher. Se há monopólio da Globo é o da qualidade.
Para muitos o senhor é a própria encarnação da
direita brasileira. Como reage a isso?
ROBERTO MARINHO: Em "A rebelião das massas" Ortega y Gasset diz
que “ser da esquerda é, como ser da direita, uma das infinitas maneiras
que o homem pode eleger para ser um imbecil”. Também penso assim.
Sempre distingui os homens por seu potencial de criatividade e competência.
A revista "Forbes" todo ano destaca o senhor
na lista dos homens mais ricos do mundo. Como se sente a respeito?
ROBERTO MARINHO: Adquiri cada centavo do que dizem ser uma fortuna
com muito suor e trabalho. Acho que o dinheiro dá conforto, permite
ajudar os amigos, mas não é tudo.
Sabe-se que planeja um livro de memórias que
já tem até título, “Condenado ao êxito”. Como está ele?
ROBERTO MARINHO: Espero poder ter tempo de escrevê-lo. Mas muito
do material já se encontra pesquisado. Seria fácil para mim ditá-lo,
usar o gravador, mas não quero fazer isso. Afinal é o livro da minha
vida. Quero escrevê-lo.
O que o Brasil precisa resolver com urgência?
ROBERTO MARINHO: A pobreza que grassa no país, o problema educacional
e a questão da violência.
O senhor é um otimista, não?
ROBERTO MARINHO: Sempre fui. Creio que, por mais tenebrosa que seja
a situação, sempre há uma saída. E isso vale tanto para a vida das
nações quanto para a dos homens.
O que despreza?
ROBERTO MARINHO: A prepotência, a demagogia e a incompetência.
O senhor acredita em Deus?
ROBERTO MARINHO: Eu sou um homem religioso. Minha relação com Deus
é a melhor possível. Ao longo da vida temos tido muitas conversas.
E a morte, o senhor pensa nela?
ROBERTO MARINHO: Eu sempre vivi muito ocupado para pensar no assunto.
Mas ela faz parte da vida.
Dr. Roberto, qual o segredo do seu sucesso?
ROBERTO MARINHO: Persistência em levar a termo os meus projetos,
e o senso e a intuição dos meus limites. Mas, principalmente, respeito
aos valores e ao talento, onde quer que eles estejam.
Há muita mitologia em torno do senhor. Portanto,
quem é Roberto Marinho?
ROBERTO MARINHO: Um homem que já teve desafetos, embora não os tenha
procurado, e que hoje vive cercado de muita ternura. Alguém que
se sente feliz.
Especial
O GLOBO
Rio de Janeiro
08/08/2003
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