A MORTE É UM ESCÂNDALO,
DE LUIZ FELIPE CASTRO MENDES
Cecília Costa
O ativo cônsul português Luís Filipe
Castro Mendes, que generosamente vive abrindo os salões do Palácio
São Clemente para tertúlias literárias e outros eventos — com destaque
para as comemorações do Descobrimento, que lhe exigiram um trabalho
extenuante — é também um ótimo poeta. Quem quiser descobrir a leveza
e o apuro formal da poesia deste tão gentil anfitrião tem agora
uma boa oportunidade com a edição, pela Topbooks, de sua “Poesia
reunida”. A obra, composta por oito livros de poemas que versam
sobre a morte, o desejo, a neve e a névoa e a fugacidade das relações
humanas, será lançada na próxima quinta-feira no Palácio, com direito
a coquetel e leitura de versos.
Cecilia Costa
“Poesia reunida” traz poemas de 1985 a 1999. Começou a escrever
poesia em 1985, Luís Filipe, ou rejeitou os primeiros versos?
LUÍS FILIPE CASTRO MENDES: Comecei a escrever poesia bem jovem,
lá pelos 15 anos. Publiquei versos no “Diário de Lisboa” juvenil.
Meu primeiro livro, “Recados”, foi editado em 1983. Mas mesmo esse
livro ainda era imaturo. Por isso preferi iniciar esta “Poesia reunida”
com “Seis elegias”, escritas em 1985, quando eu tinha 35 anos. Meus
poemas anteriores não me satisfaziam.
Escreve só poesia?
LUÍS FILIPE: Também escrevi novelas, contos, mas o que sou mesmo
é poeta. Tenho sete livros de poesia publicados em Portugal e neste
livro da Topbooks foi acrescentado um oitavo, de 1999, “Os amantes
obscuros”. E já há um outro quase no prelo, “Dias inventados”, programado
para sair em outubro pela minha editora portuguesa e que traz referências
ao Brasil. Fico feliz com a edição desta “Poesia reunida”, que traz
textos de três poetas brasileiros, Ivan Junqueira, Pedro Lyra e
Alexei Bueno. Foi uma alegria para mim o editor José Mario Pereira
decidir me publicar no Brasil, já que aqui, como poeta, sou desconhecido.
Por que, já tendo uma antologia
publicada em Portugal, sair no Brasil é tão importante?
LUÍS FILIPE: Sim, já tenho uma obra reunida em Portugal. Mas é muito
precária a circulação de livros portugueses no Brasil e de livros
brasileiros em Portugal. Existe um problema comercial sério, de
parte a parte, o que resulta num enorme desconhecimento dos autores
de Portugal no Brasil e do Brasil em Portugal. A poesia brasileira,
fora algumas exceções, como Ferreira Gullar, Adélia Prado e Manoel
de Barros, ainda está parada em João Cabral de Melo Neto. Os poetas
brasileiros mais conhecidos em Portugal continuam sendo os dos anos
50, 60, ou seja, Bandeira, Drummond, Cecília Meireles, Murilo Mendes,
Jorge de Lima.
E, no Brasil, qual é a situação
dos poetas portugueses?
LUÍS FILIPE: Há muito pouco conhecimento sobre a poesia portuguesa
depois de José Régio, Mario de Sá Carneiro, Florbela Espanca. Somente
os poetas e os que estudam a literatura portuguesa nas universidades
é que conhecem a obra de Jorge de Senna, Carlos de Oliveira, Sophia
de Mello Breyner, Eugénio de Andrade. De qualquer forma, começa-se
a se sentir uma tentativa de aproximação, como por exemplo a edição
pela Iluminuras da obra de Herberto Helder. Houve também a antologia
de poetas portugueses preparada por Alexei Bueno e Alberto da Costa
e Silva para a Bienal de 1999 e recentemente a revista “Rumos” publicou
um número sobre os poetas portugueses jovens. Os concretistas têm
relação com Ernesto Mello de Castro e Ana Haterli, ligados aos irmãos
Campos. Murilo Mendes foi muito amigo de Sophia, Adolfo Casaes Monteiro
e Jorge de Senna viveram aqui no Brasil, mas mesmo assim eu diria
que a poesia portuguesa, aqui, ainda está parada em José Régio e,
em Portugal, em João Cabral.
Qual seria a conseqüência?
LUÍS FILIPE: Bem, acaba que a poesia brasileira e a portuguesa estão
se desenvolvendo sem se conhecerem e trabalham com a mesma língua.
É impensável, em Portugal, ser poeta e não conhecer Drummond, Bandeira,
Cecília, mas no Brasil é grande o número de pessoas que nunca leu
Sophia ou Eugénio. Espero que o Prêmio Camões concedido a esses
dois grandes poetas ajude na divulgação aqui no Brasil, trazendo
à luz novas edições.
Bem, vamos falar de sua poesia.
Sempre menciona uma certa distância das vanguardas...
LUÍS FILIPE: Mas não sou tão radical. Gosto da tradição surrealista
portuguesa, representada sobretudo por Herberto Helder, Mario Cesarini,
Alexandre O’Neil. Mas nunca fiz parte desse movimento, que foi extremamente
importante em Portugal, tendo influenciado vários poetas. Creio
que João Cabral exerceu uma influência na poesia brasileira parecida
com a que Herberto exerceu na portuguesa, apesar de serem totalmente
diferentes. Herberto é cósmico, visionário, Cabral teve o efeito
da secura, da dureza. Houve muitos imitadores de Herberto em Portugal,
mas meu caminho foi outro.
Sua poesia evoluiu em direção
às formas fixas, não?
LUÍS FILIPE: Sim, passei por um processo de busca de formas. Os
dois livros iniciais, “Seis elegias” e “A ilha dos mortos”, não
têm a procura formal dos livros posteriores, sendo mais soltos.
Mas em “Jogo de fazer versos” e em “Viagem de inverno” retomei as
formas canônicas, como a terza rima, a sixtina, o soneto inglês,
os epigramas. Tenho um compromisso com o rigor e com a história
do poema, daí os versos intertextuais. A forma fixa para mim faz
parte do jogo. Fiz também poemas políticos, como “Idos de Marx”,
sempre preocupado em introduzir muitas vozes e cores em minha lírica.
A partir de “Modos de música”, no entanto, creio que minha poesia
foi ficando mais uniforme, o mesmo ocorrendo em “Os amantes obscuros”.
Já em meu último livro volto a diversificar mais, sem abandonar
as formas canônicas.
A música da morte é a poesia?
LUÍS FILIPE: A música da morte é uma defesa contra a morte. É preciso
fazer esta pequena música para não ouvir a morte. Para esquecer
o silêncio da morte. E essa pequena música pode ser a poesia, mas
pode ser também a arte, a vida, tudo aquilo a que a gente se apega
ou faz para perdurar, ficar, transcender nosso destino comum.
Crê em vida após a morte?
LUÍS FILIPE: Não. A morte é um escândalo. Não existe nada após o
nosso existir. Tentamos lutar, esquecer o silêncio através do desejo,
do amor, da poesia. Mas de nada adianta que algo fique depois de
nós. De nada adianta para Eça de Queiroz que ele continue sendo
muito famoso. Eça está morto. Eu não creio em espírito. Em outras
palavras, se nossa obra for imortal, isso não nos trará benefícios
no tocante à nossa morte.
Seus poemas são sempre dedicados
a alguém, uma mulher, parece.
LUÍS FILIPE: É verdade, costumam ter um destinatário. Existe um
apelo a alguém. Uma presença, uma ausência, um grito metafísico.
O tu é uma forma de fugir ao nada. E ao mesmo tempo ele é o nada.
Há uma tensão em torno deste destinatário, que faz parte da lírica
amorosa. A grande poesia é amorosa e a expectativa amorosa tem a
ver com esta tensão que alimenta a poesia, entre a ausência e a
presença, entre a falta, a impossibilidade de amar, e o desejo de
amar. Sempre estaremos insatisfeitos, sempre teremos fome no coração.
E as cidades de sua poesia?
LUÍS FILIPE: Alguns lugares para mim são matéria de poesia. Cidades
da África, Angola, cidades de minha infância. Vivi em muitas cidades.
Mesmo em pequeno me mudei muito. Tive uma vida nômade. Trago recordações.
Cidades abstratas de memória. Cidades que evocam. Os poemas recordam-nas,
mas também fazem com que quem os leia recorde suas próprias cidades.
Ou então que sinta uma nova experiência. Pois a poesia é para isso.
Ela não seria poesia se os sentimentos não convergissem. O leitor
tem que sentir um movimento análogo ao poeta dentro de si. Em sua
memória, em sua sensibilidade. Mas ao mesmo tempo o poema tem que
inspirar algo diferente, ir além. Ser sensível aos sentidos e ao
som.
O GLOBO
11/08/2001
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