EM DEFESA DE UMA UNIVERSIDADE
SEM MUROS
Luciana Hidalgo
Organizador de “Nenhum Brasil existe
— Pequena enciclopédia” (Editora Topbooks/UniverCidade/Uerj), o
professor de literatura da Uerj João Cezar de Castro Rocha dá entrevista
sobre o livro e discute, entre outros assuntos, a premência de uma
“universidade sem muros”, capaz de tirar dos fechados círculos universitários
discussões vitais para a sociedade. Ao leitor interessado na compreensão
do complexo e paradoxal país em que vivemos, uma boa notícia: “Nenhum
Brasil existe” é uma reunião de 88 ensaios sobre a formação da cultura
brasileira, que prima justamente pela linguagem acessível, sem os
excessos do intrincado ou cifrado linguajar acadêmico.
Comecemos pelo “título-provocação"
do livro, “Nenhum Brasil existe", extraído do poema "Hino Nacional",
de Drummond. Seria este também um “título-conclusão”? (Afinal, nos
versos o poeta chega mesmo a perguntar se acaso os próprios brasileiros
existem...)
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA: O título
pretende levar a sério a habilidade do poeta de observar a realidade
de forma extremamente aguda e pertinente. Na introdução ao volume,
o poema é longamente discutido. O artigo de Erick Felinto, “Esquecendo
o Brasil”, mostra como o tema da “inexistência” do país é uma obsessão
na obra do poeta. Os versos de Drummond merecem uma reflexão renovada.
Havia também uma intenção bem-humorada e irônica. Não se esqueça
do subtítulo do livro: “Pequena enciclopédia”. Porém, a ironia e
o bom humor são iguarias. E o saber de alguns críticos desconhece
o seu sabor. Paciência! Noutro plano, trata-se também de um “título-alerta”,
pois o Brasil não existirá como nação enquanto não criar políticas
sérias no plano social, que necessariamente incluam iniciativas
de longo prazo na educação.
Esse livro origina-se de um outro
título, em inglês, lançado na Biblioteca do Congresso dos Estados
Unidos em 2001, em celebração aos 500 anos do Descobrimento do Brasil.
Esta primeira versão foi preparada com a preocupação de se apresentar
uma idéia de Brasil ao olhar estrangeiro?
JOÃO CEZAR: Tentamos apresentar
as inúmeras “idéias” de Brasil propostas ao longo da História. Ora,
nenhum país “existe” a não ser no desejo dos que o imaginam e no
esforço dos que buscam materializar essa fantasia. Nos conhecidos
versos de Fernando Pessoa, “o mito é o nada que é tudo”. “Nenhum
Brasil existe” é uma coleção dos mitos que criamos sobre o país
que nos coube. Sua pergunta, porém, traz à baila um ponto fundamental.
Boa parte dos mitos sobre o Brasil foi fundada por estrangeiros.
A “Carta” de Caminha gerou a noção da cordialidade dos índios, discutida
por Manoel Bomfim, entre outros. Em 1816, a Missão Artística Francesa
ensinou-nos a representar a natureza e o homem dos trópicos. Em
1843, Karl Friedrich von Martius sugeriu que a verdadeira escrita
da história brasileira deveria ser a narrativa épica da miscigenação.
Portanto, em mais de uma ocasião, a “originalidade” brasileira foi
estrangeira na sua origem... Na seção “Intermediários culturais”,
esse tema é discutido de forma inovadora.
Ao publicar o livro no mercado
brasileiro, alterou-se o conceito inicial da publicação? Quais foram
as principais mudanças?
JOÃO CEZAR: O conceito não foi alterado.
Porém, o leitor brasileiro tem em mãos um novo livro: 23 ensaios
foram acrescentados; dos quais 19 escritos especialmente para o
presente volume. Criamos uma nova seção dedicada à “Carta” de Pero
Vaz de Caminha. Aumentamos consideravelmente o número de ilustrações,
incluindo oito reproduções coloridas de importantes telas. Acrescentamos
índices analítico e onomástico — cuidado infelizmente raro em livros
editados no Brasil. Com os índices, a consulta ao livro torna-se
muito mais proveitosa. Em suma, “Nenhum Brasil existe” foi concebido
como uma obra de referência, a ser consultada por quem quer que
se interesse em compreender o país. Não é livro para especialistas!
Nota-se que houve uma intenção
de reunir uma diversidade de autores, exaltando-se a qualidade “em
detrimento do eterno (e monótono) retorno do círculo de amigos ou
dos que pensam da mesma forma” (como é dito nos “Agradecimentos”).
Esta é uma característica negativa da vida intelectual brasileira?
E de que forma esta publicação combate este eterno círculo de influências?
JOÃO CEZAR: No poema “Nosso tempo”,
Drummond denunciava: “Este é tempo de partido, / tempo de homens
partidos”. Infelizmente, na vida intelectual brasileira, tanto o
passado quanto o presente reproduzem os versos. Pela ótica estreita
do compadrio intelectual e do clientelismo acadêmico, não é verdade
que não precisamos ler as obras dos membros do nosso grupo? Afinal,
sabemos que são livros geniais... E, ainda com mais razão, estamos
dispensados de estudar os volumes escritos por adeptos de outros
círculos. Afinal, sabemos que são livros destituídos de qualquer
interesse... Ora, com base nesse critério “científico”, é possível
escrever sobre uma “pequena” enciclopédia de 1.107 páginas, lendo
somente os índices e criticando capítulos de desafetos... Chegou
a hora de dizer com todas as palavras, sem receio de represálias:
isso não é vida intelectual, isso é uma farsa e de gosto duvidoso.
Qualquer pessoa que simplesmente folhear o sumário de “Nenhum Brasil
existe” perceberá que essa “pequena enciclopédia” não possui parti
pris . Professores e pesquisadores de todas as escolas e partidos
colaboraram. O único critério de escolha foi a qualidade do trabalho.
Logo na introdução você diz que
a organização deste tipo de coletânea representa um “empreendimento
parcialmente fictício”, pois não vem a público para trazer respostas,
e sim para suscitar (usando o termo de Jean-François Lyotard) “perguntas
filosóficas”. A colocação de perguntas filosóficas, no entanto,
não costuma fazer parte da “vocação” do Brasil; na sua opinião,
isso está mudando? A universidade brasileira tem contribuído satisfatoriamente
para o fomento desse tipo de discussão?
JOÃO CEZAR: A tarefa é parcialmente
fictícia porque sabemos que nunca estará completa. É como um jogo
cujas cartas continuam sendo embaralhadas. Entretanto, e todo bom
jogador sabe muito bem, o melhor da partida não é o resultado, mas
seu caráter lúdico. Não creio que possamos considerar a tradição
brasileira desprovida de “vocação” filosófica. Contamos com um conjunto
considerável de ensaios dedicados à pergunta “que país é este?”.
Não é verdade que certa vertente da música popular brasileira, no
sentido de sua pergunta, atribuiu-se a vocação de pensar o país?
E o mesmo não é verdade para boa parte do cinema brasileiro? Claro,
não se trata de uma questão filosófica no sentido acadêmico, mas
creio que precisamos revalorizar esses esforços, vendo neles uma
potência filosófica que não deve limitar-se aos muros da universidade.
Precisamos de uma universidade sem muros. Nas páginas finais da
“Crítica da razão pura”, Kant ensinou a lição definitiva: “Não se
pode aprender filosofia, mas pode-se aprender a filosofar”. Isto
é, não se trata de repetir conteúdos, porém de assumir uma postura
crítica, buscando os limites do conhecimento possível. “Nenhum Brasil
existe” pretende dar um passo nessa direção.
A publicação tem o grande mérito
de ser uma obra de referência com ensaios consistentes, sem os excessos
do linguajar acadêmico, ou seja, o leitor comum, interessado na
compreensão do Brasil, lerá a obra com facilidade. Esta aproximação
do grande público foi intencional? Na sua opinião, de que forma
a universidade brasileira vem levando estas discussões para a sociedade,
retirando-as dos isolados círculos acadêmicos?
JOÃO CEZAR: Desde o princípio o
objetivo era produzir um volume de referência, resultado de anos
de dedicação dos colaboradores a seus temas de estudo, mas que,
ao mesmo tempo, pudesse atrair o leitor comum. Uma possível epígrafe
para “Nenhum Brasil existe” seria a máxima de Victor Hugo: “Para
ser inteligente, é preciso ser inteligível”. A principal função
política da universidade pública deveria ser esta: tornar o conhecimento
produzido nas academias acessível à sociedade civil. Para tanto,
a linguagem deve ser menos especializada. O intelectual deveria
praticar a “esquizofrenia produtiva”, por assim dizer. Na discussão
com seus pares, nos congressos e nos cursos, sua linguagem deve
ser a do especialista. Já no diálogo com a sociedade, deve criar
pontes entre o pesquisador e o cidadão, tornando a sociedade cúmplice
da universidade pública. Pública, gratuita e capaz de dialogar com
o mundo.
A certa altura, você diz que
os principais pensadores dedicados a revelar o que seria a “identidade
nacional” acabam melancolicamente descrevendo o que o país não foi
(moderno, democrático etc.) e o que ainda não é (país de primeiro
mundo, potência mundial etc.), remetendo à eterna idéia (a "maldição"
de Stefan Zweig) do Brasil como o "país do futuro". O que os artigos,
em geral, trazem de novo em relação a esta renitente ferida narcísica
do país — a tal da “identidade nacional”? Novas descobertas?
JOÃO CEZAR: A compreensão de que
essa ferida é parte da própria busca pela identidade. Trata-se de
uma fratura exposta de que não podemos nos livrar. Sobretudo numa
sociedade como a brasileira, fruto de séculos de escravidão e de
uma constrangedora história republicana que nunca priorizou a noção
de cidadania. Especialmente numa sociedade cujos donos do poder
são autênticos malabaristas na arte nada sutil de equilibrar-se
nos poleiros da República. A saída é reconhecer que a sociedade
brasileira tem sido uma perversa máquina de exclusão social e que
é preciso assumir um compromisso sério com mudanças estruturais
básicas. Para as elites, o país sempre foi um presente muito promissor,
que oculta um passado vergonhoso. É preciso começar, hoje, a construir
um futuro que realmente inclua a maior parte da população.
Ao criar a seção "Audiovisual"
e reunir textos sobre o rádio, a televisão e até mesmo sobre rap,
você levou em conta a tradição oral num país onde o analfabetismo
bate recordes mundiais. Por que optou por este viés?
JOÃO CEZAR: Desejava romper com
o preconceito em relação aos meios audiovisuais. Ora, vários intelectuais
dizem com estudado desinteresse: “Televisão? Nunca assisto... Novelas?
O que é isso?”. O mesmo ocorre no tocante ao rádio e à música popular.
Trata-se de um absurdo completo! Na verdade, os meios audiovisuais
são fundamentais para se compreender a “existência” do território
imaginário chamado Brasil. O cinema, o telejornal, as novelas e
a música popular são a narrativa por excelência do Brasil contemporâneo.
Assim como a seção sobre a “Carta” de Caminha abre o livro, a seção
“Audiovisual” encerra o volume, pois representa o país hoje em dia.
Os artigos de Eugenio Bucci e Eduardo Neiva desenvolvem um novo
conceito sobre a televisão brasileira. O ensaio de Jorge Ruffinelli
apresenta uma análise pioneira do conjunto da obra de Walter Moreira
Salles. E o texto de Maria Rita Kehl propõe uma corajosa análise
dos Racionais MC’s.
Que ensaios você destacaria em
outras seções do livro como realmente inovadores em relação aos
estudos históricos realizados até a atualidade?
JOÃO CEZAR: Todos os ensaios merecem
destaque. De fato, a qualidade dos textos e a importância dos colaboradores
são muito grandes. Mas posso assinalar alguns. Por exemplo, o ensaio
de Hans Ulrich Gumbrecht propõe como chave de leitura o caráter
imediato da escrita de Caminha, que redige sua “Carta” no instante
mesmo em que presencia o encontro das culturas. Vera Beatriz Siqueira
mostra como as aquarelas de Jean-Baptiste Debret não devem ser consideradas
um “documentário” do Rio de Janeiro. O ensaio de Victor Hugo Pereira
sobre o “caso Ziembinsky” aponta as contradições do estrangeiro
que é recebido como artista importante porque... é estrangeiro!
E Roberto DaMatta propõe brilhante leitura de fotografia tirada
no Museu Nacional do Rio de Janeiro, em 1939, reunindo antropólogos
brasileiros e estrangeiros, entre os quais o jovem Claude Lévy-Strauss.
Em sua análise, DaMatta desconstrói boa parte dos mecanismos que
ainda hoje controlam a vida intelectual no Brasil. Na seção dedicada
a Gilberto Freyre, Ricardo Benzaquen, com notável sutileza analítica,
associa a sua obra à busca do tempo perdido. No caso do sociólogo
brasileiro, tratava-se de não deixar o presente perder-se do passado.
Freyre era mais proustiano que Proust.
E nas áreas de cultura e literatura,
o que há de novidade?
JOÃO CEZAR: Publicamos um ensaio
inédito de Roberto Ventura sobre Manoel Bomfim. Gostaria de dedicar-lhe
o volume, pois poucos intelectuais mostraram-se tão empenhados em
compreender o Brasil e em renovar o panorama de nossa vida intelectual.
Francisco Falcon realiza uma valiosa síntese do período pombalino,
concentrando-se na cultura colonial. Tarcísio Costa renova nosso
entendimento de Rui Barbosa, discutindo sua preocupação com a questão
social e política. Lilia Schwarcz e Valter Sinder analisam importantes
obras de José Murilo de Carvalho e Roberto DaMatta, respectivamente.
Na literatura, Bethania Mariani escreveu um importante artigo sobre
a imposição do português como língua oficial no Brasil. Marcos Antonio
de Moraes desvenda o “método Mário de Andrade”, com base na distinção
entre “erudição” e “conhecimento”, incluindo manuscritos inéditos
do autor de “Macunaíma”. Silviano Santiago revela um novo Monteiro
Lobato, obcecado pela idéia da morte. E Roberto Acízelo sintetiza
os primórdios da escrita da história da literatura brasileira. Como
não poderia deixar de ser, as primeiras histórias literárias foram
produzidas por estrangeiros! Em seu artigo, Kenneth David Jackson
apresenta uma reflexão de grande interesse sobre a figura do “malandro”.
Para tanto, relê as obras de Antonio Candido e Roberto DaMatta,
sem deixar de considerar os escritores modernistas. Numa direção
similar, Raúl Antelo discute a obra do mais importante crítico literário
brasileiro do século XX: Antonio Candido.
O GLOBO
22/02/2007
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