OFÍCIO CLANDESTINO
Rodrigo Fonseca
O 'imortal' em seu apartamento
em Botafogo: 'Hoje um poeta
só é reconhecido se aparecer
no Jô Soares'
Ao esparramar-se na poltrona de couro da sala
de estar de sua casa, em Botafogo, esticando os pés sobre
a mesinha de centro para posar para o fotógrafo, Lêdo
Ivo indagou, preocupado:
- Será que vão pensar que sou um ocioso?
Imagina! Qualquer um que passe os olhos pelo calhamaço de
1.100 páginas, recém-lançado pela TOPBOOKS
sob o nome Poesia completa - 1940-2004, vai ter certeza de
que o ócio não teve lugar em sua vida. O livro reúne
os versos escritos ao longo de seis décadas por este pequeno
grande alagoano de 1,60m de altura e 80 anos de causos para contar.
Desde sua estréia, com As imaginações,
nos idos de 40, até hoje, ele não parou de inventar
estrofes. E é a vontade de inová-las que ainda o conduz
à máquina de escrever, já que a erudição
artística de Lêdo é inversamente proporcional
a seu conhecimento de informática ("Sou um analfabeto
eletrônico", avisa).
Imortalizado na Academia Brasileira de Letras em 1986, Lêdo
acredita que escrever não é mais um ofício
ilustre. Na entrevista a seguir, ele diz que a poesia passou a ser
uma ocupação clandestina, já que o lugar do
poeta foi ocupado pelos pilotos de Fórmula 1 e pelos atores
de TV.
Diz também que a ABL está mais forte do que nunca,
justamente porque agora integra figuras da mídia, como Paulo
Coelho, e explica por que não gosta de ser incluído
literariamente na geração modernista de 1945.
- Poesia é profissão?
- Poesia não é dom, é ofício que se
aprimora conforme você se educa. Isso porque a arte é
mais uma questão de cultura do que emoção,
já que a gente se despersonaliza conforme vive e aprende.
E a função do poeta, como escritor, é construir
a literatura de seu povo. Mais ainda quando se é um poeta
de língua portuguesa, que não tem uma grande tradição
literária, ao contrário dos franceses, ingleses e
alemães, que têm séculos de cultura atrás
de si.
- O senhor se considera um poeta profissional?
- Sei fazer um poema assim como um piloto de Boeing sabe pilotar
avião. Então, sou profissional. A poesia é
um gênero que, segundo o escritor espanhol Juan Ramón
Jiménez, "se dirige à imensa minoria". São
raríssimos os poetas do mundo que chegam à notoriedade,
como Manuel Bandeira ou Carlos Drummond de Andrade. Mas eu nunca
esperei a posteridade. A posteridade de um poeta é o aqui
e o agora.
- O livro Poesia completa abarca 64
anos de fazer poético. O que mudou na poesia brasileira nesse
tempo?
- O Brasil, de 40 anos para cá, deixou de ser um império
da palavra escrita para ser uma civilização informatizada,
"internética", dominada pela imagem. Então,
o poeta, que antes ocupava um lugar central na cultura, hoje é
uma figura clandestina. Em seu lugar entraram os grandes cantores,
os pilotos de Fórmula 1, as celebridades de TV.
- Então hoje o escritor já não
desperta atenções?
- Hoje, no Brasil, os escritores não são mais figuras
icônicas. Eu vivi um tempo em que, quando passeava com José
Lins do Rego (autor de Menino de engenho) pela Av. Rio Branco,
defronte às barbearias, os barbeiros se curvavam para nos
saudar. Naquele momento, os autores eram figuras conhecidas. Hoje,
só se é reconhecido quando se vai à televisão,
ao programa do Jô Soares, por exemplo. Uma vez eu estava em
Paris, na fila de embarque da Varig, no aeroporto, e o Jô
me viu. "Lêdo Ivo, você por aqui?!", ele gritou,
e me abraçou contente. Pouco depois, o camarada do guichê
se dirigiu a mim e disse: "O senhor está convidado para
a sala vip", e me passou para a classe executiva. Graças
ao Jô.
'Hoje, o poeta é um solitário'
Aos 80 anos, Lêdo só quer reler os
clássicos: 'É como uma leitura de
adeus, antes da morte'
- Então os jovens poetas devem perder
o otimismo?
- Olha, tudo eu vejo com olhos otimistas. Poema é aquilo
que o poeta diz que é poema. Não se pode apontar o
certo e o errado. Eu mesmo prefiro o erro fecundo ao acerto congelado.
- O que tem lido dos poetas da nova geração?
- Quase nada. Mas não por preconceito. As grandes editoras
não publicam mais o gênero, é um trabalho que
sai caro, é dispendioso. Há outro fator também.
Para um poeta da minha idade, o universo de leitura é diferente.
Você está interessado em ler clássicos, como
se fosse uma leitura de adeus. É como se você relesse
aquilo que gostaria de ver antes de morrer e atingir a imaginária
outra margem do rio. Então, você fica exigente e só
quer saber de Goethe, Racine, Proust.
- E entre os gigantes brasileiros, há
algum a ser relido?
- Olha, para simplificar: há Castro Alves, Gonçalves
Dias e Cruz e Sousa no século 19. No século 20, Bandeira,
Drummond, João Cabral de Melo Neto e Jorge de Lima. Pronto,
está paga a fatura. Senão, eu viro catálogo
telefônico de poeta.
- O senhor é daqueles que citam as
poesias preferidas de cabeça?
- ''Tu sobre o nada sabes mais que os mortos''. É Mallarmé.
Há também: ''A primavera voltou. A terra é
como uma criança que sabe poemas'', de Rilke. Poesia dos
outros eu sei de cabeça. As minhas, não.
- O senhor sempre refutou pertencer à
geração modernista de 45. Por quê?
- Porque essa sempre foi uma classificação cronológica,
não estética. Tenho sim os mesmos desígnios
da geração do pós-guerra. Sempre que converso
com contemporâneos estrangeiros percebo que a admiração
por Mallarmé, Paul Valéry e Ezra Pound nos são
comuns. Também é comum a convicção de
que, após a 2ª Guerra, os ismos desapareceram.
Antes havia romantismo, parnasianismo, simbolismo. Hoje tudo sumiu
e o poeta ficou solitário.
- O senhor se sente só na ABL? Qual
é o papel da Academia hoje?
- A ABL hoje está mais forte do que nunca no imaginário
popular. Tanto que recebemos muitas cartas de meninos de escola,
com sonhos de escritor, dizendo que, quando crescerem, vão
querer entrar na vaga da gente. O caso é que, há 40
anos, os acadêmicos eram levados na troça. Mas hoje
a Academia se sintonizou inteiramente com a atualidade literária,
abrindo espaço para nomes como Paulo Coelho, Nélida
Piñon, Carlos Heitor Cony, enfim, figuras de muita presença
na mídia. Acreditou-se por muito tempo que a ABL era um sindicato
de escritores, coisa que ela nunca foi. Lá, confraternizam-se
juristas, políticos e médicos, com a função
de institucionalizar a cultura. Algo importante para um país
que trata seu patrimônio com tanta bagunça.
- A Academia ainda é a casa de Machado
de Assis?
- Academia não é só a casa de Machado. É
a casa de Rui Barbosa, José Lins do Rego, Manuel Bandeira,
Paulo Coelho. E um dia, quem sabe, pode virar a casa de Lêdo
Ivo.
- O senhor diz que vê tudo com bons
olhos. O que acha da política nacional?
- Quando se vive muito, sabe-se que o problema fundamental do Brasil,
a miséria, continuou. Em Alagoas, a terra de onde venho,
por exemplo, só duas coisas não mudaram desde que
saí de lá: a miséria e o vento do mar. Mas,
como eu não sou profeta, não sei dizer qual é
a saída.
Leia aqui
a entrevista do poeta ao Jornal do Commercio
Leia também
a entrevista feita por Geneton Moraes Neto
Caderno B
JORNAL DO BRASIL
Rio de Janeiro
14/10/2004
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