AS MÁSCARAS DE PER JOHNS
Entrevista a Álvaro Costa e Silva
Escritor cujo compromisso é apenas com
a literatura, que foge das badalações e talvez por
isso seja muito pouco conhecido do grande público - embora
tenha arrebanhado admiradores do porte de um José Paulo Paes,
de um Otto Lara Resende, de um Ruy Castro -, Per Johns (apesar do
nome, é carioca nascido em 1933, filho de pais dinamarqueses)
reuniu alguns de seus ensaios publicados na imprensa ao longo os
últimos anos no livro Dioniso crucificado,
que a Topbooks acaba de mandar para as livrarias. Aliando
universalidade, erudição e estilo límpido,
o ensaísta trata de nomes importantes como Isak Dinesen,
Hans Christian Andersen, Selma Lagerlöf, Stefan Zweig, T. S.
Eliot, Ingmar Bergman (seus filmes como peças literárias).
Nas orelhas, o escritor Godofredo de Oliveira chega a afirmar que
o pensador Vicente Ferreira da Silva, depois do artigo que Per Johns
lhe dedica, voltará finalmente a ter o destaque que merece
na historiografia brasileira. Autor da trilogia romanesca As
aves de Cassandra, Cemitérios marinhos às vezes
são festivos (também pela Topbooks) e Navegante
de opereta, o escritor e tradutor Per Johns diz, nesta entrevista,
que os ensaios de Dioniso crucificado mantêm
estreita ligação com sua obra ficcional : ''As personagens
de minhas ficções sofrem da mesma dicotomia que se
espelha nos ensaios. Guerreiam-se dentro delas e têm a maior
dificuldade para assumir por inteiro ou a máscara que envergam
para fora ou o fundo do que são para dentro, e que não
pode deixar de se exprimir de alguma maneira''.
· Qual a gênese de Dioniso
crucificado? Trata-se de uma reunião de artigos críticos
mas que mantêm uma unidade, como nota Godofredo de Oliveira
Neto nas orelhas?
- De fato, é um livro amadurecido ao longo
do tempo, uma espécie de diário de bordo revisitado,
que compõe um horizonte de leitura. E entenda-se leitura
não só no sentido literal, mas também figurado,
de leitura do mundo. Em conseqüência, tem o conjunto
essa unidade que o Godofredo de Oliveira Neto argutamente anotou.
Uma unidade de vida e pensamento. Entretanto, é importante
que não se confunda unidade com unanimidade. É uma
unidade que se guerreia a si mesma. Ou antes, que tenta viver em
paz com sua guerra.
· Gostaria que o senhor falasse da importância
da filosofia de Vicente Ferreira da Silva, pensador que está
esquecido e de que poucos ouviram falar.
- Vicente Ferreira da Silva, morto em 1963, tentou
dar forma a um pensamento que, tanto quanto possível, não
separa pensamento e vida. Ao preconizar "um novo tipo de livre
atuação do espírito" fez tabula rasa dos
cânones vigentes. E transitou ao contrário das cartilhas
humanistas. Mas não se diga que não sabia do que estava
falando, de vez que partiu da lógica matemática (escreveu
em 1940 o primeiro livro de logística no Brasil) para o existencialismo
e desembocou no mito, entendido não como aquilo que encobre
o real, mas como aquilo que o desvela. E que guarda as sementes
da vida, mas entenda-se, da vida convivida e não apenas explicada,
vista de dentro e não por fora, uma espécie, por assim
dizer, de ecologia anímica. Com isso, desemboca na conclusão
aparentemente paradoxal, que não deve ser confundida com
irracionalismo, de que, quanto menos focada no homem for a vida,
mais humana será. Um pensamento difícil, que não
se presta a reduções ou simplificações,
mas que começa a amadurecer no horizonte, talvez como a última
possibilidade que tem o homem de entender que sua sobrevivência
depende da inclusão do não-humano no âmago do
humano, como parte do humano. E isso não depende só
do entendimento. Talvez dependa de uma religiosidade que, entretanto,
jamais se cristaliza em religião ou ritual.
· No ensaio sobre Dora Ferreira da Silva,
há uma comparação com autores que o senhor
chama de "abissais", Cornélio Pena e Lúcio
Cardoso, entre eles.
- É uma questão que se prende ao
preconceito que o estrangeiro formou do Brasil e que o brasileiro,
infelizmente, costuma endossar. A rigor, uma síndrome colonial.
A idéia de que se trata de um país mercê do
clima tropical, habitado por gente extrovertida que se esgota no
pitoresco e no exótico, muito mais afeita à epiderme
que ao espírito, preocupada com o canto e não com
a verdade, infensa às águas profundas, que mais demandam
hábeis escafandristas do que alegres erotômanos. Em
suma, mais afeitos à horizontalidade do que a essa verticalidade
que chamo de abissal. Um equívoco admiravelmente desmentido,
mas talvez insuficientemente notado, por Dora Ferreira da Silva
entre outros, que singram nas águas profundas de Cecília
Meireles, Clarice Lispector, Cornélio Pena, Lúcio
Cardoso e Jorge de Lima, para ficar só nesses. São
todos autores admiravelmente abissais, que não dependem de
passaporte para sê-lo.
· Andersen é uma referência
nos artigos. Aproveitando a data redonda dos 200 anos, gostaria
que o senhor comentasse a obra dele.
- É curiosa a sina literária de
Hans Christian Andersen. Autor de fábulas e reciclador de
mitos fundantes, Andersen tem sido mal lido (ou interpretado) no
que tange a seus chamados contos de fadas. Ela, a fada, o pôs,
de fato, na pele da criança, mas seu recado destinava-se
ao adulto. Em outras palavras, Andersen conseguiu o milagre de continuar
sendo a criança que foi, sem deixar de ser o adulto que se
tornou, munido da agudeza intelectual de um filósofo. Sua
sabedoria acrescenta-se à inata percepção infantil
em vez de subtraí-la. Uma combinação que tem
de difícil o que tem de raro e vem a ser, a rigor, o ápice
de toda a literatura. Por outro lado, ao dar voz a plantas e bichos,
Andersen não o fez - como antes dele o fizeram Esopo, La
Fontaine, Perrault e os irmãos Grimm - apenas para ressaltar
atributos humanos em animais, e sim, para ressaltar suas próprias
especificidades, únicas e intransferíveis, do menor
ao maior dos seres. Andersen se locomove com familiaridade que se
diria mediúnica entre os diferentes mundos. No mundo animal
ou vegetal vê com olhos de gente. E tem sonhos humanos. No
mundo humano vê como bicho ou planta. E tem sonhos de bicho
ou planta. É a própria integração, literariamente
consumada, com que sonhava Vicente Ferreira da Silva.
· O senhor se refere aos paradoxos
e equívocos de Isak Dinesen.
- A literatura de Isak Dinesen (Karen Blixen)
insere-se dentro da mesma dilemática dos outros ensaios:
aponta para o divórcio e a conseqüente ânsia de
conciliar pensamento e vida, sentimento e entendimento, razão
e emoção. No caso dela, os dois pólos são
representados pela África e a Europa.
· O senhor afirma que Selma Lagerlöf
é uma figura solitária, existencial e literariamente.
Por quê?
- Como Isak Dinesen, mas num outro diapasão,
Selma Lagerlöf remete-nos ainda uma vez à nostalgia
dessa ligação perdida do homem com o todo que o cerca,
na melhor tradição de Hans Christian Andersen. Sua
literatura transforma-se num magnífico "correlativo
objetivo" das idéias da autora sobre o homem e suas
relações com o mundo, desvendando muitos dos "laços
invisíveis" (título de um de seus livros) que
conectam tudo a tudo, sem exclusão, malgré lui,
do próprio homem. É solitária por isso, como
o foram Andersen, Dinesen, Rilke e Ferreira da Silva, por acreditar
no que estava fora do horizonte do possível (naquele instante).
· O senhor discute se os roteiros de Ingmar
Bergman seriam ou não peças literárias.
- Curiosamente, em vários de seus roteiros,
Bergman se desculpa com seu leitor (no caso, seus colaboradores
na feitura do filme) por sua inabilidade em escrevê-los. Não
obstante, é um dos poucos cineastas cujos roteiros não
só podem ser lidos independentemente como denotam um estilo
e uma inventiva particular. Do ponto de vista do filme (não
fosse ele o cineasta) talvez sejam incompletos, embora não
o sejam do ponto de vista literário. Feitos mais de sugestões
do que de descrições, coalhados de subentendidos,
fazem aflorar cenas do inconsciente profundo, a exemplo do que sugere
a seus colaboradores em Gritos e sussurros: que se deixem submergir
no riquíssimo fluxo vaginal (sic) da fantasia, que se assemelha
"mais do que tudo a um escuro fluir de águas profundas".
Tangencia aqui a expressão poética por ambição
e desígnio, a ponto de ocorrer, por vezes, algo de paradoxal
do ponto de vista do filme, mas não da literatura: alguns
de seus melhores roteiros, a exemplo de A hora do lobo, resultaram
em filmes malogrados (de acordo com ele próprio opinião).
O escritor Bergman, entretanto, sem disfarces, como escritor que
era e sempre foi, só viria a desvelar-se inteiramente em
sua admirável autobiografia Lanterna mágica,
que é mais do que uma autobiografia: é a alma escandinava
posta a nu.
· Em nota ao leitor, o senhor afirma que
os ensaios mantêm estreita ligação com a sua
obra de ficção. Poderia explicar melhor essa relação?
- As personagens de minhas ficções
sofrem da mesma dicotomia que se espelha nos ensaios. Guerreiam-se
dentro delas e têm a maior dificuldade para assumir por inteiro
ou a máscara que envergam para fora - inarredável
exigência social - ou o fundo do que são para dentro,
e que não pode deixar de se exprimir de alguma maneira. Por
outro lado, constroem-se sem cessar. São tudo, menos unânimes.
Tanto as personagens reais dos ensaios como as inventadas das ficções
tangenciam-se numa filosofia (ou religiosidade) que nasceu comigo
e foi tomando forma ao longo da vida. Não a procurei; ela
é que me achou.
· Ruy Castro diz que seus romances formam
uma ilha na literatura brasileira. O senhor concorda?
- Ruy Castro foi muito generoso comigo e mostrou
uma faceta pouco comum em nosso meio literário: interessou-se
pelo texto de um autor que ele nunca havia visto, e que pouquíssimos
conheciam. Quanto a serem meus livros uma ilha na literatura brasileira,
eles o são de fato, embora façam parte de um arquipélago
que conta com representantes mais ou menos conhecidos, do esquecido
Samuel Rawet a nomes como Moacyr Scliar, Milton Hatoum e Salim Miguel.
Todavia, é estranho que sejam ilhas num continente de tantos
pais (ou avós) imigrantes e filhos (ou netos) nacionais.
Em dois agudos ensaios, o saudoso José Paulo Paes chamou
a atenção do leitor brasileiro para esse fato inusitado.
· Gostaria que o senhor falasse de sua
obra ficcional e, em particular, de sua trilogia.
- Publiquei um livro de contos e cinco romances.
Os três últimos - As aves de Cassandra, Cemitérios
marinhos às vezes são festivos e Navegante
de opereta - compõem uma trilogia que justamente lida
com esse choque cultural e humano que se processa num lar de imigrantes
a meio caminho de perder suas origens sem ganhar o país de
adoção, e o tipo de seqüela que isso deixa nos
filhos, sobretudo quando se trata de filhos bilíngües.
Se a pátria é a língua, qual é a pátria
deles? No mínimo, acarreta uma sensibilidade um tanto dilacerada
entre a inevitabilidade do jus sanguinis em confronto com o jus
soli, em qualquer caso uma estranha sensação de não
se pertencer inteiramente ou de se pertencer apenas em parte. Não
se é nem radicado nem desenraizado. Resulta uma espécie
de homem sem qualidades definidas, vale dizer, que tem em si mais
ou menos do que precisa ou é desejável.
· Muita gente pensa que o senhor é
dinamarquês. O senhor se sente nascido onde?
- Descontado o que foi dito antes, sou tão
dinamarquês quanto a Clarice Lispector foi russa, Samuel Rawet,
polonês, ou Salim Miguel, libanês. Minha língua
é o português. Logo...
Caderno Idéias
JORNAL DO BRASIL
Rio de Janeiro
17/06/2005
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