A ESTÉTICA DA
DIFERENÇA
Aos
oitenta anos e lançando uma obra que reúne toda a
poesia produzida em 60 anos de carreira, o alagoano Lêdo Ivo
faz questão de afastar quaisquer especulações
acerca de ter chegado na confortável posição
de fazer um balanço do seu trabalho ou mesmo de colocar um
ponto final na sua produção. Definindo-se não
como um grande escritor, mas como um escritor durável, atemporal,
Lêdo Ivo vê a obra Poesia Completa - 1940-2004 (Topbooks/Braskem,
2004) como a grande prova de sua permanência como artista
na construção de uma estética do antagonismo,
do choque entre o rigor e o transbordamento, do excesso domado pela
exatidão da construção. Mais vigoroso e efervescente
de idéias como nunca, o escritor se sente vivendo uma espécie
de grande estréia, como se estivesse lançando pela
primeira vez toda sua obra. E avisa: "O escritor nunca está
completo".
No ano em que o senhor completa
80 anos, o lançamento de Poesia Completa é
uma coincidência ou uma reflexão sobre sua obra? Não
teme que interpretem como finitude?
LEDO IVO - Na verdade, estou
com uma sensação de estréia total. Estou estreando
com todos os livros que escrevi e acho que uma obra como essa tem
uma importância muito grande para o leitor comum, pois é
muito difícil encontrar um trabalho meu da década
de 60, por exemplo. Um livro que reúne uma trajetória
de 60 anos tem um peso muito grande e pode ajudar muito quem quer
compreender a minha obra.
Olhando hoje para a obra que
construiu em 60 anos o que o senhor vê? O que há em
comum entre o Ledo Ivo de As Imaginações, de
1940, e o Ledo Ivo do recém-lançado Plenilúnio
?
LI - É como
se visse um "ex-eu". Cobra renovando a pele. Os poemas
mais antigos refletem o início de minha formação
cultural, carregados de catolicismo. Tecnicamente, percebo que já
estavam em semente as várias direções que minha
poesia iria tomar no futuro - a marca do surrealismo, os versos
longos, respiratórios, a diversidade, a visão irônica
da vida e a convicção de que o poeta é um objeto
verbal.
O que mudou na sua poesia?
LI - A maneira de dizer as
mesmas coisas com outras palavras. O que permite ao escritor mudar
é a variação de seu vocabulário, de
seu léxico. O resto não muda. Minha poesia continuou
sempre uma espécie de constante vacilação entre
o rigor e o excesso, a exatidão e o transbordamento. É
uma poesia irreconciliável, ambivalente, vigorosa e construtiva.
Um excesso domado sob a vigilância da construção.
O senhor se considera um grande
escritor?
LI - Grande é Dante,
como dizia Manuel Bandeira. Sou apenas um escritor durável
e a prova disso é o meu trajeto de mais de 60 anos. Como
os meus modelos foram sempre os de poetas preocupados com a permanência,
tive uma grande tranqüilidade em relação à
literatura. Sempre quis ser um escritor que iria entrar para a história
da literatura brasileira, desde muito jovem. Eu me considero um
escritor transgeracional e transpessoal.
Quais são os elementos
mais marcantes da cidade de Maceió no seu imaginário?
LI - O fato de Maceió
ser uma cidade portuária, uma cidade de evasão. Desde
a minha infância achei que minha vida transcorreria longe
da terra natal. Esse universo amplo, de vastidão, me despertou
um sentimento de que eu era uma criatura dotada da linguagem de
poder falar pelos que não falam, cantar pelos que não
cantam.
Na apresentação
de "Poesia Completa", Ivan Junqueira ressalta esse memorialismo,
o vínculo com as raízes nordestinas de sua obra. Não
há como escapar do regionalismo?
LI - Em mim há um
grande peso da ancestralidade. O sentimento é visceral. Sou
descendente de índios caetés. Saí daqui com
18 anos, mas carrego esse mundo de águas, navios, lagoas
e caranguejos de Alagoas - são imagens humanizadas em mim.
Alagoano é muito enraizado, todo mundo se conhece, todo mundo
é parente. Lembro uma vez, um amigo meu daqui dormiu com
uma mulher e no outro dia descobriu que ela era tia dele. Aqui todo
mundo é família...
Nunca quis voltar para Maceió?
LI - Não. Sabia que
o meu destino como escritor era lá no Rio de Janeiro. Mas
esse é um passo muito arriscado, pois a metrópole
não recebe ninguém de braços abertos. A metrópole
é um cemitério de ilusões. Hoje, com 80 anos,
aprendi que o mundo é cenário darwinístico
- só sobrevivem os mais aptos. No meu caso, dei sorte, nunca
tive que lutar pessoalmente, cara a cara. Sabia que teria um espaço
porque minha obra é muito pessoal, muito marcada. Sou por
uma estética da diferença, da "pluri-significação".
Como vê a produção
literária atual?
LI - Com a introdução
de novas linguagens, como a internet e a televisão, a posição
da literatura mudou muito no Brasil. O mercado hoje tem um peso
muito grande. Tem escritor que vive em função disso.
O poeta hoje não é mais aquele do tempo do Bandeira,
ele vive na obscuridade. Hoje, você só é notado
se aparecer na televisão. Quando comecei, o Brasil era um
país de letras, hoje não. O próprio jornal
perdeu a primazia da informação. O escritor hoje tem
que se tornar uma celebridade, como a Luana Piovani.
Quem o senhor lê dos escritores
contemporâneos?
LI - Desde a infância
que leio tudo. Gostava muito de ler livros de piratas e navios.
Tenho uma grande biblioteca. Nas minhas muitas viagens, compro muitos
livros, pois minha curiosidade é muito grande, mas diria
que estou numa época de releitura mais do que de leitura.
Que conselho daria a um jovem
escritor que quer vencer a batalha nesse cenário darwinístico?
LI - Em primeiro lugar, jovem
escritor não segue o conselho de ninguém, mas peço
que ele não acredite apenas no talento. A vocação
é só o primeiro passo. Busque cultura, aprimoramento,
resista às sereias do mercado e da mídia. Feche-se
como uma concha, para depois se abrir.
Caderno Artes & Espetáculos
JORNAL DO COMMERCIO
Rio de Janeiro
10 e 11/10/2004
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