PARA UMA MELHOR COMPREENSÃO DE GILBERTO
FREYRE
Quando era editado por José Olympio, Gilberto
Freyre sonhou com uma coleção de todas as suas obras, que não pôde
ver realizada. A “Gilbertiana” nasce 13 anos após a sua morte, por
iniciativa de outro José, o José Mário Pereira, da Topbooks, do
Rio de Janeiro. A partir de maio, saem os primeiros volumes de uma
série de dez programada para concluir-se em dois anos. Nesta entrevista,
o editor fala de sua amizade com Freyre e das edições que fará.
Jornal do Commercio – Por que a Topbooks resolveu
criar uma coleção especial para editar Gilberto Freyre?
José Mário Pereira – A Topbooks tem em produção dez reedições
de livros de Gilberto Freyre. Todos sairão com prefácios de estudiosos
de sua obra. A idéia é fornecer ao leitor o aparato crítico indispensável
para uma melhor compreensão do escritor pernambucano. Há muita mitologia
negativa em torno de Gilberto. Estes prefácios, escritos por historiadores
e críticos do porte de José Guilherme Merquior, Evaldo Cabral de
Mello, Mary del Priore, Eduardo Portella, Alberto da Costa e Silva
e Wilson Martins, entre outros, contribuirão para pôr fim ao preconceito
em torno da obra de Gilberto. Há mais de dois anos me empenho neste
projeto – como editor, é claro, mas também como um modo de, afetivamente,
retribuir as gentilezas de Gilberto para comigo. Sou, certamente,
o único editor de minha geração a ter tido relações pessoais com
ele. Daí estar dando a estas edições toda a prioridade. Pedi a Victor
Burton, um dos maiores designers do país, um projeto gráfico, e
as capas dos dez primeiros livros. Quando editava seus livros na
José Olympio, Gilberto Freyre chegou a pensar em reunir sua obra
numa coleção - uma “gilbertiana”. A idéia acabou não vingando. Dizem
que a editora ficou inibida porque também publicava e mantinha fortes
laços de amizade com outra grande figura da época, Gilberto Amado.
Se Gilberto Freyre tivesse a sua gilbertiana, o que fazer com a
obra do outro Gilberto? Como ainda não sou editor de Gilberto Amado,
posso fazer em torno de Gilberto Freyre, de comum acordo com sua
família, esta coleção.
JC – Quais, quantos e quando saem os primeiros
volumes da "gilbertiana"?
JMP – O contrato que fiz com a Fundação Gilberto Freyre me
dá dois anos para publicar dez títulos. Durante este período, como
um voto de confiança, a Fundação não negocia com nenhuma editora
nada do que está disponível, nem mesmo material inédito. Se, porém,
a Topbooks concluir o trabalho antes dos dois anos – o que vai acontecer
– imediatamente se estabelece uma nova cota de dez títulos para
publicação. Os livros começam a sair em maio. O que vai ser editado,
pela ordem, é: Assombrações do Recife Velho, Além do apenas moderno,
Aventura e rotina, Novo mundo nos trópicos, Ingleses no Brasil,
Prefácios desgarrados, Guia de Olinda, Guia do Recife, Tempo morto
e outros tempos e A propósito de frades.
JC – Sabe-se que você, ainda jovem, foi amigo
do Gilberto Freyre. Que recordações tem desse período? pensou que
se tornaria o seu editor?
JMP – Gilberto Freyre era um homem muito atencioso, e suas
relações caminhavam rapidamente para o afetivo. Não estabelecia
barreiras no diálogo, fosse com pessoas de sua idade, fosse com
gente mais nova. Possuía uma qualidade que muito admiro: sabia ouvir.
Mesmo quando diziam besteira perto dele, ouvia com complacência,
embora seu olhos deixassem revelar um certo incômodo. Quando ia
ao Rio de Janeiro, quase sempre com Dona Madalena, ficava hospedado
no Hotel Flórida, no Catete. Eu ia lá para conversar, pedir sugestões
de leitura. Muitas vezes ele marcava comigo na José Olympio à tarde
e, percebendo que eu era um garoto de poucos recursos, mandava me
dar os livros dele que eu não tinha. Uma vez, na década de 70, eu
estava no Recife fazendo uma pesquisa. Telefonei e ele logo me convidou
a aparecer em sua casa. Passei uma tarde inteira em Apipucos, e
lembro que neste dia ele me apresentou a Lula Cardoso Aires. Durante
anos Gilberto foi membro do Conselho Federal de Cultura, que se
reunia uma vez por mês no prédio do MEC, na Avenida Graça Aranha.
Eu estava sempre lá, e quando me via ele perguntava: "Como vai,
cearense?", ou "O que você está lendo agora?" – coisas assim, mas
ditas num tom que quem presenciasse passava a me dar mais atenção.
Ele estava sempre muito bem vestido, numa elegância à inglesa. Orgulhava-se
de dar um nó especial na gravata. Um dia lhe perguntei: é verdade
que Oliveira Vianna devolveu ao editor o exemplar de Casa-grande
& senzala sem abrir? Ele me disse que sim: "Não só devolveu como
engavetou para sempre o projeto de um livro que já havia anunciado,
Os arianos no Brasil". Uma outra vez eu quis saber quem era Ruediger
Bilden, nome que eu lera nas páginas de Casa-Grande e sobre quem
não achara nenhuma referência nos dicionários consultados. Ele fez
uma cara triste ao me contar que fora amigo seu nos Estados Unidos,
uma grande vocação de intelectual não inteiramente realizada por
causa do álcool, que o destruiu. Só uma vez o vi irritado: no dia
de uma conferência sua no Pen Club. Nesta época, acabara de sair
o livro de Carlos Guilherme Mota, Ideologia da Cultura Brasileira,
e quando alguém se referia a este livro ele ficava muito aborrecido.
Achava o livro injusto e redutor em relação a ele e sua obra. A
última vez em que vi Gilberto foi no Recife, quando acompanhei meu
amigo José Guilherme Merquior a uma conferência na Fundação Joaquim
Nabuco. Gilberto ficou comovido com a homenagem que Merquior lhe
fez. Conversamos os três por um bom tempo depois da conferência.
Ele era não só um grande intelectual como uma figura humana admirável.
JC – Schmidt, Knopf, José Olympio e alguns
outros. Quem foi o melhor editor de Gilberto Freyre?
JMP – Sem dúvida foi José Olympio o grande editor de Gilberto
Freyre. Na J.O. ele teve suas melhores edições. Para cada título,
editava-se um certo número de exemplares numerados, em papel especial,
com assinatura do autor, exemplares estes hoje muito raros. Tenho
quase todos. A J. O. nunca criou dificuldades para publicar Gilberto.
Acima de tudo tratava-se de um amigo da casa. Uma visita de Gilberto
à editora era uma festa. Pude comprovar isso várias vezes. Quem
ler sua correspondência com José Olympio vai perceber de imediato
que a relação dos dois era pessoal e de rara intimidade. Tratava-se
de afinidades pessoais, e não de interesses comerciais. Ninguém
pode competir com José Olympio como editor de Gilberto: afinal,
ele editou tudo, e quase tudo pela primeira vez. O que a família
Freyre quer hoje - e isso é muito importante destacar porque mostra
que não se trata de argentários, preocupados apenas com o lucro
- é um editor que tenha apreço, conheça a obra de Gilberto e se
dedique a ela. Não sou um editor rico nem minha editora foi herdada.
Tenho que trabalhar duro todo dia para mantê-la funcionando. Mas
não vou ser modesto agora: li tudo de Gilberto Freyre e, com todo
o respeito, mas sendo fiel à verdade, desconheço editor no Brasil
que tenha maior domínio intelectual da obra dele do que eu. Ou seja:
escreveu besteira sobre os livros que vou publicar, respondo na
hora - e não preciso de ghost-writer. Quem decide agora são os irmãos
Freyre, Fernando e Sônia, mas já ouvi de muitos amigos de Gilberto
Freyre - e me refiro àqueles da vida inteira - que se Gilberto fosse
vivo há muito eu seria o único editor dele. Então, para concluir:
o maior e melhor editor de Gilberto foi José Olympio. Agora, não
me pergunte, por favor, quem foi o pior editor, porque a resposta
poderia me valer um novo processo.
JC – Por que você decidiu publicar obras menos
conhecidas de Gilberto Freyre?
JMP – Se eu tenho algum mérito em relação a Gilberto Freyre
o principal deles é o de ter procurado a família, antes de qualquer
outro editor, não para me insinuar em relação a Casa-grande & Senzala,
Sobrados e Mucambos ou Ordem e Progresso, para falar só na trilogia
famosa. Eu procurei Fernando e Sônia Freyre para negociar a quase
totalidade da obra do pai, que foi desprezada pelo mercado editorial
nos últimos 20 anos. Neste período não apareceu ninguém interessado
em editar outros livros clássicos de Gilberto. Agora, com a movimentação
em torno do seu centenário, quase todo dia aparece alguém interessado
em editá-lo, não é engraçado? Os três livros que citei estão até
2003 na Record. Nesta data a família dele decidirá o que vai ser
feito. Só posso adiantar que, até lá, o que a Topbooks tiver realizado
será levado em conta pela família Freyre.
JC – Sabe-se que, durante muitos anos, Freyre
não foi bem visto no Rio de Janeiro, e ainda menos em São Paulo,
parece que devido ao seu posicionamento político nas últimas décadas
de vida. Ainda há preconceito em relação a ele?
JMP – Em especial a partir dos anos 70, erigiu-se um muro de
silêncio em torno de Gilberto, e foi na USP que se encastelaram
os principais organizadores dessa Operação Silêncio. Gilberto nunca
parou de publicar, mas eles diziam: "Não chega aos pés de Casa-grande".
E mudavam de assunto. Usavam desta retórica para não tomar conhecimento
do que ele estava fazendo. Enquanto isso, no exterior seus livros
continuavam a ser publicados e comentados. Tacharam Gilberto de
reacionário, pró-militar e outras bobagens. Esqueceram que na ditadura
Vargas ele foi preso umas três vezes. Ficou assim marcado e todo
uma geração não o leu, pois não era chique. Chique era ler Mandel,
Poulantzas e Gramsci. O muro só começou a ruir quando se passou
a falar aqui em história da vida privada, dos Duby e Cia. Então
alguém gritou: "Um escritor brasileiro, Gilberto Freyre, já fazia
isso nos anos 20, e os franceses sabem disso". Um tanto acanhados,
começaram, há uns 10 anos, a ler e a citar Sobrados e Mucambos.
Mas a má vontade ainda está instalada na Universidade. Vai, porém,
arrefecer agora, com as comemorações do centenário, espécie de blitzkrieg
gilbertiana que está tomando conta do país, e da qual a reedição
de sua obra é o principal componente.
JC – Que outras obras sobre Gilberto Freyre,
além das suas, já previstas, a Topbooks pretende editar?
JMP – Vamos publicar o Gilberto de A a Z, de Edson Nery da Fonseca,
uma autoridade em Gilberto Freyre. O livro é um dicionário com verbetes
biográficos e temáticos, uma ferramenta indispensável para se entrar
no mundo do autor. Será uma edição ilustrada. Também fui procurado
por Guillermo Giucci e Enrique Larreta, dois uruguaios que há vários
anos se dedicam a escrever uma biografia de Gilberto, e apressei-me
a lhes dizer que tenho interesse em editar tudo de bom sobre Gilberto.
Estou à espera do manuscrito para ler. Há dois anos, sugeri à UniverCidade,
do Rio de Janeiro, a criação de um prêmio para a melhor monografia
sobre qualquer aspecto da obra de Gilberto Freyre. O empresário
Ronald Levinsohn, dono da UniverCidade, gostou da idéia e criou
um prêmio de 20 mil reais, além da publicação, para o melhor trabalho.
Estão inscritos 21 ensaios, e o resultado sai ainda este mês. Há
muitos ensaios bons, que podem não vencer o concurso mas merecem
publicação. Posso garantir que trabalharei neste sentido. Na Topbooks,
Gilberto Freyre não é uma operação comercial ou um modismo, mas
uma preocupação cultural permanente.
(M.H.)
JORNAL DO COMMERCIO
Recife
15/03/2000
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