A LENDA DE JOÃO, O ASSINALADO - CRUZ
E SOUSA, O POETA NEGRO
Sylvio Back
Um romance líquido para um personagem
etéreo. A autora acerta já no título, A
lenda de João, o Assinalado – Cruz e Sousa, o poeta
negro, remetendo-nos: primeiro, à famosa frase ouvida
em O homem que matou o facínora (The man who shot Liberty
Valance, 1962), de John Ford: “Quando a lenda se torna
fato, imprima-se a lenda”; depois, ao labéu moral de
“O Assinalado” (“Tu és o Poeta, o grande
Assinalado/Que povoas o mundo despovoado/De belezas eternas”...),
título de um de seus mais extraordinários poemas;
e, fechando, com a identificação, judiciosamente étnica
para os amargos dias atuais do preconceito explícito e impune,
deste que é e continua sendo o maior poeta negro da língua
portuguesa – três vertentes que matizam o livro e lhe
emprestam torque poético-textual e originalidade imagética.
Num diapasão próximo de como tentei
reinventá-lo no filme Cruz e Sousa – O poeta do
desterro (1999), essa imersão de Margarida Patriota nas
vísceras autorais do grande poeta extrapola o mero sumário
existencial, recusa a simples exegese literária, mantém-se
equidistante de seu trágico dia a dia do subemprego, penúria,
loucura da mulher, tuberculose e orfandade intelectual.
Valendo-se de sinônimos, heterônimos
e de lugares aleatórios para descolar e decolar de um realismo
que poderia tolher sua (e a nossa) imaginação, a romancista
ousa mesmo desterritorializá-lo no tempo e no espaço.
Jamais se lê que João da Cruz e Sousa (1861-1898) é
catarinense, nascido na então Nossa Senhora do Desterro,
hoje Florianópolis, e morto prematuramente aos 36 anos. Ou
que tenha publicado apenas dois livros em vida (Missal e
Broquéis), incensados pelos amigos, todos brancos,
que o liam em voz alta para escárnio do estamento cultural
no poder do Rio de Janeiro. Esse que, de inveja, desdém e
com “racismo cordial”, procurava obstruir (até
torná-lo imperdoável!) o deslumbrante estro e a transcendência
verbal de seus magistrais poemas cravejados por uma modernidade
à toda prova.
Se na tela Cruz e Sousa é transfigurado
pelas suas encantatórias estrofes & versos plenos de
incríveis aliterações e de um virtual tantã
d'África, neste romance o poeta refulge através de
uma ficção, digamos, “impura e traiçoeira”
(sim, toda biografia é uma ficção!). Mas é
ali, sem rebuços, na jugular, que se flagra a qualidade exponencial
deste livro de Margarida Patriota. Com tônus de prosa poética,
enleada pelos interstícios do onírico poemário
de Cruz, assoma uma holografia incandescente, emotiva, livre de
afetação e de vulgaridade. É o mito renovado,
reencetado, e sempre nascituro de um Cruz e Sousa (“o Assinalado
de casta espúria”) cujos versos conflagraram quase
todos os nossos grandes poetas da primeira metade do século
XX, como assevera Mário de Andrade.
Com um insight que soa, a princípio,
como algo fora de contexto, mas que acaba articulando de forma consistente
o fluxo ficcional da narrativa, a escritora traz a lume, de forma
notável, um retrato nitidamente “cinematográfico”
de Charles Baudelaire (1821-1867); este, assim como Cruz e Sousa
em “Encarnação” (“Carnais, sejam
carnais tantos desejos/Carnais, sejam carnais tantos anseios...”),
é também um “militante do invisível”
e do fulgor erótico. A evocação mediúnica
de Baudelaire, de tão rascante, se autoexplica pelo título
do poema do seu igual-desigual.
Dessa escrita ora crua, ora recheada de simulacros,
reverberando entre o metafórico e o metafísico, é
que Margarida Patriota, “torcicolosamente” (apropriando-me
do genial neologismo cruzesousiano em “Dança do ventre”),
acaba por nos encantar na mor elegância e sabedoria estilísticas:
com e como Baudelaire, a poesia está viva! Cruz e Sousa,
114 anos depois, está vivo, os poemas incólumes e
desdatados. Portanto, imprima-se a lenda!
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