| A QUARTA CRUZ Adriano Espínola Em meio a tantos equívocos e distorções 
              que assolam a poesia brasileira contemporânea - atacada pelo 
              vírus da prosa, pelas firulas, invencionices, pedantismos, 
              passadismos, etc., etc., com as devidas e honrosas exceções 
              - A QUARTA CRUZ revela-se no mínimo aposta inquietante: 
              a reconquista do poema, mobilizado por aquilo que Heidegger chamaria 
              de projeto poético pensante. Sim, o poeta é também um pensador. 
              Não propriamente um filósofo, mas um artista que pensa 
              com os sentidos, com a alma e com o corpo (“O que em mim sente 
              está pensando”, já advertia Fernando Pessoa). 
              E sobretudo sabe extrair o seu pensar emocionado da própria 
              linguagem. Retrabalhando-a, para significar mais. Daí porque 
              a palavra poética se lança em sentidos vários, 
              a fim de expressar o mundo objetivo e subjetivo, tanto quanto o 
              próprio fazer literário. Daí, também, 
              o fato de que a palavra para o poeta, pelo seu contorno sintático-afetivo, 
              não raro encantatório, torna-se irredutível 
              a qualquer outro discurso senão àquele que se instaura 
              no corpo do poema. É o que podemos perceber neste livro singular. 
              Ao dar precedência à ideia sobre a imagem, o autor 
              empreende ampla reflexão sobre os grandes temas da poesia 
              ocidental - a dor existencial, o amor, a morte, os dias vividos, 
              a busca espiritual, as coisas em torno etc. -, sem abandono do vigor 
              conotativo das palavras. Tal empenho estético tem por alvo 
              o destino do homem no tempo (este “ser para a morte”, 
              como o mesmo Heidegger o define), com seus desejos e fraturas. Se é verdade que o poeta, em livros anteriores, 
              fazia prevalecer a imagem, de modo até extremo, dando vazão 
              a metáforas absolutas e enigmáticas, desta vez o pensamento 
              se funde à imagem. Equilibram-se. E se movimentam a partir 
              de ritmos bem calibrados e múltiplos, que vão dos 
              versos livres às formas fixas. A visão de mundo madura 
              e algo melancólica do escritor junta-se à visão 
              (quase diria: audição) da linguagem, que se abre para 
              novas nuanças e domínios, onde tradição 
              e invenção, variedade formal e complexidade temática 
              se encontram e se reclamam mutuamente. Como em toda grande poesia. O livro exige leitura e releitura incessantes, 
              para fazer emergir e vibrar os significados mais recônditos 
              do conjunto e de suas partes. A seção inicial denominada 
              “A nona hora” já nos dá uma chave do projeto 
              pensante do escritor. Segundo a tradição, foi essa 
              a hora em que Cristo teria morrido na cruz, no instante de maior 
              dor e abandono (“Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?”). 
              O poema homônimo que a inicia traz uma forte reflexão 
              centrada na vida cotidiana, em que “algo resiste” e 
              “inunda esta casa/que então é meu silêncio”. Simbolicamente trata-se do momento em que o eu 
              lírico se deixa padecer, ao se crucificar no espaço 
              da casa (“caixa de enganos”) e no tempo de agora. Resultado 
              da percepção aguda de que “algo falta”. 
              Deus será apenas “os dias vividos”. E o próprio 
              Cristo, no longo e belo poema dedicado a Ele, representa “a 
              parte (...) de um mistério/que nos condena à distância/de 
              uma quarta cruz”. Ora, a quarta cruz não existiu no Gólgota. 
              Ela, todavia, existe como metáfora de uma ausência 
              irremovível dentro de nós. Seria o vazio, a falta 
              sobre a qual crucifixamos o nosso “corpo que, enfim, é 
              outro”. Porque somos o que não temos. Ou, como afirma 
              Weydson, “somos um silêncio cortado/por desejos, por 
              palavras,/pela eterna recordação”. Essa falta 
              perene, a nosso ver, não é outra senão a do 
              “amor, suor do futuro”. O título do primeiro poema também 
              nos fornece outra pista interpretativa do livro, voltada para a 
              composição e organização das peças. 
              Trata-se da referência ao número nove. O volume compreende 
              quatro seções, cada qual com nove textos, totalizando, 
              assim, trinta e seis poemas. Qual o sentido do nove? Para os numerólogos, 
              representaria a manifestação divina nos três 
              planos da realidade: no mundo do espírito, no da alma e no 
              da matéria. Na Cabala, corresponderia a Yesod, o Fundamento, 
              a Base. Na mística cristã, à ascensão 
              da alma em nove degraus. E na arte, à inspiração 
              e às realizações harmoniosas. Como assim podemos 
              perceber em A quarta cruz. Mas não se pense que o livro tematiza 
              tão somente questões esotéricas ou religiosas. 
              Na verdade, elas aqui se encontram transfiguradas no plano individual 
              e mesmo no biográfico. Por isso mesmo, o autor pode dizer 
              que “o poema, agora,/se presta ao presente,/ao surdo bater 
              do relógio do espaço.//A casa está limpa. Impregnada/de 
              corpos e nomes”. A originalidade do poeta se revela, entre outras 
              coisas, na transposição de alguns símbolos 
              ou passagens da narrativa cristã, de forma literariamente 
              superlativa, para o plano da imanência do dia a dia e das 
              aspirações do corpo (“A sede deste encanto não 
              sacia,/pois feito o pão do amor também é sal”). 
              Sob o item originalidade,aliás, chamo a atenção 
              do leitor para alguns poemas (“A curva”, “Meu 
              filho sou eu”, “Canção”, “O 
              encontro”, p. ex.) e versos (“A morte que em tudo principia”, 
              “A noite enrijece seus membros, esfria seus muros,/bebe os 
              escuros do próprio luto” etc.) de incomum fatura. Se episódios bíblicos aconteceram 
              em tempos remotos e deram ao homem uma meta de ascensão espiritual 
              no céu superior, Weydson Barros Leal soube redimensioná-los 
              no chão humano e urbano (Recife/Rio) do presente, voltados 
              para o drama existencial-amoroso do sujeito lírico, em estado 
              de tensão insolúvel. Deste modo, o autor reafirma 
              a experiência da vida e da poesia modernas como uma aventura, 
              ao mesmo tempo dissonante e fascinante.
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