AS MEMÓRIAS DO DIPLOMATA GEORGE F.
KENNAN
Luciano Trigo
VOLUME 1
Em breve ensaio sobre George F. Kennan (1904-2005),
Henry Kissinger constata com tristeza que o grande diplomata americano
não tem hoje o reconhecimento a que faz jus sua vasta produção
intelectual. No Brasil, essa lacuna é amenizada agora com
a edição dos dois tomos de suas Memórias
(1925-1950 e 1950-1963), obra de alta relevância histórica
e profundidade de análise que, embora publicada em 1967,
ainda não ganhara tradução em português.
Recupera-se aqui a crônica pessoal de um
dos diplomatas mais influentes do seu tempo. Kennan teve uma carreira
extraordinária e uma vida longa. Serviu em Moscou nos anos
30, no tempo em que Stalin consolidava a ferro e fogo sua liderança.
Estava em Praga quando os nazistas invadiram a Tchecoslováquia.
Daí rumou para Berlim quando os Estados Unidos declararam
guerra à Alemanha. Em 1944-46, funcionava como braço
direito do poderoso embaixador Averell Harriman na embaixada em
Moscou, transformando-se em testemunha direta da tragédia
européia no seu inverno terrível.
Para a imensa maioria dos diplomatas servindo
em postos tão cruciais, carreira como a de Kennan seria enorme
realização. Para ele, porém, representou apenas
a plataforma para a articulação de uma doutrina –
a contenção da União Soviética –
que viria a se tornar a base da política externa americana
até o fim da Guerra Fria. Logo se tornaria o homem que a
Casa Branca e o Pentágono consultavam quando queriam entender
as sutilezas da psicologia da URSS, do Leste europeu e dos países
asiáticos, e suas lições continuam válidas.
Após a vitória aliada em 1945,
o sentimento prevalecente no Ocidente era o de gratidão pela
pátria de Stalin, que, com seus 20 milhões de mortos
e sua resistência tenaz às tropas nazistas, fora peça-chave
na derrota de Hitler. A visão dominante em Washington era
a de que Moscou decidira orientar-se por uma política de
coexistência pacífica com o Ocidente. Kennan, ao contrário,
pensava que a leniência com a União Soviética
constituía um equívoco, pois os Estados Unidos eram
obrigados a enfrentar uma hostilidade inerente, já que, “em
nome do marxismo, os soviéticos sacrificavam qualquer valor
ético”. A seu ver, o confronto era inevitável.
Em 1946, Kennan redigiu de Moscou o que ficou
na história como “o longo telegrama”. Na condição
de encarregado de negócios, e aproveitando-se da ausência
do embaixador Harriman, enviou ao Departamento de Estado um comunicado
de 19 páginas demonstrando que Stalin não abandonaria
a tradição imperial russa, e que seria um erro pensar
que a URSS poderia vir a se tornar parceira leal na defesa de uma
ordem mundial centrada na Carta da ONU – o que, naquele momento,
era a doutrina americana de política externa. Segundo Kennan,
“os russos não se sensibilizarão por gestos
de boa vontade”.
Em julho de 1947, para reafirmar sua posição,
escreveu para a revista Foreign Affairs um brilhante ensaio
intitulado “The Sources of Soviet Conduct” (As origens
do comportamento soviético) – que assinou anonimamente
como X – destinado a público mais amplo. A mensagem,
basicamente a mesma do “longo telegrama”, destacava
que “o principal elemento de qualquer política dos
EUA em relação à União Soviética
deve ser a contenção a longo prazo e paciente, mas
firme e vigilante, das tendências expansionistas russas”,
concluindo com uma profecia: “A política externa soviética
representa uma consistente e cautelosa pressão para enfraquecer
e destruir todas as influências e poderes rivais”.
As posições defendidas por Kennan
prevaleceram e plasmaram a política americana, desde o governo
do presidente Harry Truman e seu secretário de Estado, Dean
Acheson, no fim dos anos 40, até a vitória na Guerra
Fria em 1991. É feito extraordinário para um diplomata
que nunca chegou a ocupar cargos de destaque no centro do poder
em Washington. Prolífico historiador das relações
internacionais, George F. Kennan trabalhou até quase os 100
anos em seu sóbrio escritório no Centro de Estudos
Avançados, em Princeton. Autor de clássicos ainda
hoje estudados em universidades, como American Diplomacy: 1900-1950
e Russia and the West under Lenin and Stalin, além de
16 outros livros, a recém-lançada edição
nos Estados Unidos de seus diários (The Kennan Diaries)
atesta o continuado interesse por sua obra.
Luiz Felipe Lampreia
Ministro das Relações Exteriores
(1995- 2001)
VOLUME 2
“Este não é apenas um excelente
livro de memórias, mas o ensaio político mais valioso
escrito por um americano no século XX”. Assim se referiu
o historiador John Lukács, em resenha publicada na revista
The New Republic, à autobiografia do diplomata e estrategista
George F. Kennan, cujo segundo volume o leitor tem em mãos.
Cobrindo um período crucial da história geopolítica
do século XX – 1950 a 1963, os anos mais quentes da
Guerra Fria, com perdão do trocadilho – o próprio
autor tem consciência de não ter produzido apenas um
testemunho privilegiado dos acontecimentos: já no primeiro
parágrafo do prólogo, ele apresenta como propósito
do livro “descrever a evolução de uma filosofia
do poder público em geral, e de relações exteriores
em particular”.
Em 1950, marco inicial deste volume, George Kennan,
o principal arquiteto da política de “contenção”
em relação à União Soviética
durante a Guerra Fria, deixou o serviço diplomático
após uma carreira de um quarto de século, ao longo
da qual foi um espectador engajado da ascensão do nacional-socialismo
na Alemanha de Weimar; da coletivização e dos expurgos
stalinistas; e da eclosão e desdobramentos da Segunda Guerra,
experiências narradas no primeiro volume.
Seu desencantamento com os rumos erráticos
que a política externa norte-americana estava tomando –
com demonstrações de força prevalecendo sobre
as sutilezas da negociação diplomática –
fez com que, aos 46 anos, trocasse a movimentada carreira pública
em Washington e no exterior pela promessa de uma tranquila vida
acadêmica no Instituto de Estudos Avançados da Universidade
Princeton, a convite do amigo Robert Oppenheimer. Moraria em Princeton
pelo resto de sua longa – morreu em 2005, aos 101 anos –
e produtiva existência, com exceção dos períodos
em que, atendendo a novas convocações da Casa Branca,
assumiu as embaixadas na Rússia e na Iugoslávia.
Mas a expectativa de tranquilidade durou pouco.
Quando, no ano seguinte, o general Douglas MacArthur foi dispensado
pelo presidente Truman em meio ao acirramento da Guerra da Coreia,
o Departamento de Estado convocou Kennan para negociar com Iakov
Malik, o delegado soviético na Organização
das Nações Unidas, um acordo sobre o conflito: reuniões
secretas, em russo, foram realizadas antes do cessar-fogo formal,
o que salvou os Estados Unidos de um vexame e aumentou ainda mais
o cacife de Kennan – tanto que, em 1952, ele foi nomeado embaixador
na União Soviética. Em Moscou, onde acabou declarado
persona non grata, começou a aprofundar os estudos
sobre a Ásia e o Extremo Oriente, reforçando sua convicção
de que as ações americanas na região eram geralmente
desastrosas.
As análises de Kennan sobre a Rússia,
a China e o Japão são um dos pontos altos do livro,
povoado por personagens ilustres: Truman, Eisenhower, Tito, Stalin,
John Foster Dulles e o senador Joseph McCarthy, entre muitos outros.
Um capítulo inteiro é dedicado às controversas
Palestras Reith, pronunciadas por Kennan em 1957, que provocaram
intenso debate internacional sobre o futuro da Alemanha e o papel
dos Estados Unidos na Europa Ocidental. Também merece destaque
a reflexão do autor sobre sua própria formação
e amadurecimento como historiador, empenhado não apenas em
interpretar mas também em influenciar a condução
das questões cruciais do século XX.
Estas memórias abordam criticamente características
que permanecem na política externa americana: a prevalência
da lógica militar, a insistência na vitória
total em qualquer conflito, a intransigência com os inimigos,
as percepções equivocadas da política internacional
por parte do Congresso e da própria sociedade americana.
Conciliando reminiscências pessoais, recapitulação
rigorosa dos acontecimentos e argutas reflexões sobre a filosofia
política e as disciplinas da História, o autor demonstra
extraordinária habilidade para identificar tendências
a partir de detalhes, com uma prosa sempre elegantemente literária.
Mas esta obra trata também do imenso fardo que os imperativos
da política podem representar para um homem inteligente e
íntegro a quem são atribuídas grandes responsabilidades:
como diplomata e estrategista, como pesquisador e historiador, como
intérprete afiado e como ator dos acontecimentos que relata
e analisa, George F. Kennan foi bem-sucedido nessa missão.
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Frases
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