O INCRÍVEL CASO DO MORTO-VIVO
Adriano Espínola
Ao inscrever sua obra na já longa linhagem
literária da sátira política, Roberto França
nos propõe uma “interessantíssima e invulgar
história exemplar” neste O incrível caso
do morto-vivo. Com efeito, se o gênero satírico
se destaca desde os primórdios pela dupla vertente, a do
entretenimento e a da crítica, ao expor ao ridículo
notadamente as pretensões humanas ligadas ao poder, isto
é, à prática política – a que
se juntam as falhas administrativas, educacionais e econômicas,
as falcatruas e injustiças decorrentes daí –,
o autor dá continuidade a uma tradição que
decola com os gregos e os poetas latinos Juvenal e Horácio;
segue, entre outros, com os barrocos Francisco Quevedo e Gregório
de Matos (este, com sua “lira maldizente”, esmerou-se
em cantar “as torpezas do Brasil, vícios e enganos”,
no final do século XVII); fortalece-se com o filósofo
iluminista Montesquieu (com suas Cartas persas, zomba da
França dos Bourbons); passa, ainda, em nossa literatura,
pelo árcade Tomás Antônio Gonzaga/Critilo (com
As cartas chilenas ataca a administração de
Vila Rica pelo Fanfarrão Minésio, o governador Luís
da Cunha Meneses), até chegar ao desabusado Lima Barreto,
que, com a narrativa de Os Bruzundangas (1923), investe com
mordacidade e graça contra os costumes sociais, políticos
e culturais de muitos dos habitantes, no início do século
XX, do fictício país que todos nós sabemos
onde se localiza.
Também Roberto França cria, à
sua maneira, uma fictícia cidade interiorana, Capivara da
Serra, para nos contar a história de um “carismático
prefeito (...) cuja admiração se diz por aí
se espalhou em fama, graças a uma mulher de mais direta eficiência
em seus meios e fins, nem sempre reconhecidos e justificados pela
maldosa oposição”. Naquela cidade, o autor situa
e descreve as peripécias e “a sede desmesurada de poder
que sofrem esses pobrezinhos seres de Deus que vivem atormentados
pela ganância e a vaidade faraônica”.
Bem se nota, a partir dos trechos transcritos,
que o estilo do escritor está eivado de ironia e alusões,
criando a partir daí um discurso engenhoso, que se abre catarticamente
para o metafórico da criação literária
e para o realismo da cena política dos nossos dias. A semelhança
de um plano ao outro, ele logo nos adverte, será “uma
mera e infeliz coincidência”. Observa-se também,
ao longo da narrativa, um fundo moralizante e jurídico em
torno das personagens e cenas criadas (não por acaso, Montesquieu,
Gregório de Matos e Tomás Antônio Gonzaga eram,
como o nosso autor, advogados e/ou doutrinadores do Direito). Daí
o caráter “exemplar” da história. O romancista
afirma que ela transcorre aos moldes do Decamerão,
de Boccaccio, mas creio que deva mais a Os Bruzundangas,
de Lima Barreto: ao vincular o seu relato ao texto do século
XIII, Roberto se vale de um estratagema literário para falar
na verdade das atuais práticas políticas, bem próximas
de nós.
Como todo discurso de teor alegórico-crítico,
a possível identificação dos fatos e personagens,
o encaixe de uma coisa na outra, embora matizado pela ficção,
dá curso e comunicabilidade à narrativa e aos aspectos
caricaturais e humorísticos que implicam. Daí também
o caráter fantástico e inverossímil que muitas
passagens assumem, as quais, entretanto, são perfeitamente
integradas pelo discurso satírico. Que, por seu turno, provoca
no leitor a suspensão (muitas vezes para rir) da descrença,
a fim de acentuar o caráter risível e paradoxalmente
reconhecível dessa mesma realidade.
Tal é o caso desse divertido e intrigante
romance. Isso se deve também à força estilística
do escritor. Como poucos, ele sabe entremear a dinâmica da
narrativa a digressões, não sem certa ironia e leveza,
de caráter filosófico, literário e/ou político
(nesse último tópico, deixa habilmente que os frequentadores
do famigerado Bar Chopim, espécie de Ágora etílica,
defendam a ideia da democracia e ataquem os desmandos locais).
Do mesmo modo, sabe enlaçar com eficácia
o registro culto ao coloquial, o descritivo ao dialógico,
criando tensões e distensões a toda hora. Tudo isso
faz com que o leitor se veja seduzido pelo desenrolar da farsa diabólica
do prefeito Cesário Albuquerque. Este, com a ajuda do amigo
e cúmplice Amaral (na verdade, seu rival político
e amoroso), deseja se passar por morto, a fim de assegurar-se do
que realmente pensam dele os amigos, os aliados e a mulher, Lucrécia.
Essa curiosidade e a tentativa de maior controle político
e afetivo do outro terminam por comprovar a sentença mineira,
segundo a qual esperteza demais engole o homem, como se verá,
com proveito, nas páginas que seguem.
Nelas, o leitor igualmente encontrará
surpresas e reviravoltas, relatadas de modo vertiginoso até.
Trama política e trama amorosa, drama existencial e drama
social, mudanças e transformações identitárias
de alguns personagens, realismo crítico e romantismo gótico,
engajamento político e fantasia, tudo isso e mais alguma
coisa se entrelaçam, de forma singular, neste O incrível
caso do morto-vivo – uma sátira do país
conduzido, ainda hoje, por carismáticos “guias”
e salvadores da pátria.
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