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Blog do Luciano Trigo

Em livro polêmico, Antonio Risério ataca o 'fascismo identitário'
 Segundo o antropólogo baiano, movimentos que nasceram inclusivos
 tornaram-se excludentes

Por Luciano Trigo
11/11/2019

"Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária" (Topbooks, 146 pgs. / R$ 49,90) é um livro que promete causar polêmica. Rompendo a espiral de silêncio reinante nos ambientes intelectual e acadêmico, o antropólogo baiano Antonio Risério faz ataques severos a movimentos de minoria que, traindo sua origem, teriam se convertido em guetos fechados e avessos a qualquer forma de divergência, perseguindo de forma brutal e truculenta todos aqueles que ousam criticá-los. Segundo o autor, o que era para ser inclusivo tornou-se excludente. Risério identifica nesse processo a emergência de um verdadeiro fascismo identitário, incapaz de compreender a complexidade da sociedade brasileira além dos clichês do cercadinho ideológico de uma certa esquerda.

Nascido em Salvador em 1953, Risério é antropólogo, poeta, ensaísta e escritor. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, é autor, entre outros livros, de “A casa no Brasil” (Topbooks, 2019), “A utopia brasileira e os movimentos negros”, “Adorável comunista” e “O poético e o político”. Nessa entrevista, ele analisa fenômenos como a “politização do ressentimento”, faz críticas aos movimentos feminista e racialista e prega a superação da polarização ideológica e do apartheid identitário que hoje divide a sociedade brasileira e contamina a democracia: “É preciso dessacralizar os identitários. Desmantelar aura e auréola de vítimas e mártires que pretendem se colocar acima de tudo, como juízes e algozes implacáveis das coisas da vida e do mundo. Combater seus ‘tribalismos’, sua glorificação do gueto, seus expedientes fascistas”.

Você faz uma analogia entre as patrulhas ideológicas dos anos 70 e o que chama de comportamento fascista da esquerda identitária dos dias atuais. O que aproxima e o que diferencia os dois fenômenos?

Antônio Risério: 
Penso que há duas diferenças básicas: a diferença mental e a diferença comportamental. A diferença mental diz respeito ao seguinte: apesar do sectarismo e da estreiteza política e cultural, aqueles esquerdistas das patrulhas ideológicas ainda tinham uma visão de conjunto da sociedade que pretendiam mudar. Hoje, não: os identitários não têm uma percepção global da sociedade. Só sabem ver baias, guetos, nichos, escaninhos. Perderam a percepção da totalidade. Pensam e operam de forma fragmentária, canonizando seus próprios guetos. Suas reivindicações não levam em conta a população brasileira, mas apenas os desejos e interesses deles mesmos. Por exemplo: os neonegros se conduzem como se o problema do desemprego não fosse social, mas étnico; as neofeministas, por sua vez, se conduzem como se todo problema trabalhista fosse sexual. Não estão nem aí para o fato de o desemprego ser um problema geral da população brasileira. Já no plano comportamental, a diferença está no grau de violência. O grau de violência das patrulhas ideológicas era relativamente baixo. Mas as milícias identitárias são brutais, truculentas. O que aproxima as antigas patrulhas e as atuais milícias é a intolerância. Com a diferença de que os identitários levam essa intolerância ao extremo. Se tivessem poder, promoveriam banimentos e fuzilamentos. Digamos, por assim dizer, que as patrulhas eram fascistóides, ao passo que os identitários são fascistas de cabo a rabo, fascistas totais.

Você escreve que a esquerda identitária se sente moralmente superior aos mortais comuns, mas também que ela promove a "politização do ressentimento". De que forma essa esquerda capitaliza o ressentimento de determinados grupos?

Risério: Eles se veem como a própria encarnação do bem. Comportam-se como se o “oprimido” fosse, apenas por ser “oprimido”, um ente sagrado, moralmente superior. Mais: o “oprimido”, só por ser “oprimido”, é o portador da verdade, do sentido e do destino histórico da humanidade. Ora, quem se vê assim, não tem o que aprender no mundo. Daí que a essa autoconsagração se alie a mais rude ignorância – ignorância filosófica, histórica, estética, política, cultural. O militante identitário, regra geral, é um obtuso, incapaz de enxergar um palmo além do seu nariz ou do seu quintal.  Daí que, quando questionados mais seriamente, reajam não com argumentos, mas com xingamentos e ataques histéricos, acusando quem os questiona de canalha, desonesto, fascista, machista, escória moral da espécie humana etc. Ou seja: não estão interessados em nenhuma conversa; trata-se apenas de calar e asfixiar qualquer discordância, qualquer dissenso, qualquer dissidência. E fazem isso reunidos em bandos, em “coletivos” que, na verdade, não passam de milícias. E o mais curioso é que adotam essa postura moral justamente para atropelar raivosamente os mais elementares princípios éticos. Veja então qual é a estratégia discursiva do identitário: a afirmação de “status” através da afirmação da inferioridade social. É a sua autodefinição como “excluído” ou “oprimido” que lhe confere “status”. Ou seja: a autovitimização é um atalho para a autonobilitação na figura sofrida e heroica do “oprimido”, que agora veio cobrar a conta do “Ocidente branco”. Até parece coisa de desenho animado. De certa forma, havia algo disso já na esquerda tradicional, um certo endeusamento do proletariado, contrariando, nesse caso, a visão do próprio Marx, em “A ideologia alemã”, por exemplo, ou mesmo a de Trotsky, em “Literatura e Revolução”. A diferença é que a esquerda tradicional endeusava o proletariado, enquanto os identitários endeusam-se a si próprios.

A destruição de reputações com base em acusações levianas vem se tornando um fenômeno frequente e assustador, num verdadeiro tribunal inquisitorial. Não é paradoxal que essa prática venha ancorada num discurso de defesa da tolerância?

Risério: 
Vamos caminhar com vagar. Os identitários acham que são donos absolutos da verdade, que são moralmente superiores ao resto da espécie humana e querem dominar o mundo. Ora, quando uma pessoa é capaz de chegar ao ponto de se convencer de uma coisa dessas, ela se converte em fanática. É isso o que está acontecendo à nossa volta, e já há algum tempo, com nossos políticos, artistas, intelectuais, salvo exceções realmente honrosas, apoiando ou fazendo vista grossa para o fato. E o fanatismo se guia por uma perversão lógica tão insustentável quanto inflexível, tão patológica quanto implacável. Acha que vale tudo. Que tudo é legítimo para impor o “bem” e destruir o “mal”. É uma postura imediatamente comparável à dos evangélicos combatendo o candomblé. E é por isso mesmo que os identitários não demonstram a mínima hesitação em falsificar a História, em desprezar a realidade factual, em investir violenta e mentirosamente sobre quem não concorda com eles. Podemos listar facilmente exemplos de cada uma dessas coisas. Veja-se como os racialistas neonegros fecham os olhos para o fato de os negros de Palmares e os negros malês terem sido escravistas. Fecham os olhos para o fato de que, no sistema escravista brasileiro, até escravos compravam escravos.

Do mesmo modo, as neofeministas se concentram exclusivamente no ataque a um Ocidente que não mais existe: um Ocidente “patriarcal”. E não dizem nada sobre o resto do mundo: fecham os olhos para a barra pesada que as mulheres sofrem sob a opressão islâmica; fecham os olhos para a prática da extração do clitóris em culturas tradicionais africanas; fecham os olhos para a cruel dominação masculina sobre as mulheres que vemos no mundo indiano e mesmo ainda no mundo chinês. E assim por diante. É por isso que Camille Paglia diz que os identitários deveriam ser obrigados a fazer cursos de História comparada – e também, acrescento, de antropologia e sociologia de sociedades e culturas extra-ocidentais. Se tivessem um mínimo de noção disso, saberiam que a escravidão não é um karma branco, mas um karma da humanidade. Assim como não dariam atestados de estupidez ao considerar que hoje a mulher é mais oprimida no Ocidente do que em sociedades muçulmanas, por exemplo. Mesmo em nossa antiga sociedade tupinambá, onde desfrutavam temporariamente de alguma liberdade sexual, as mulheres eram mercadoria, moedas de troca, dadas de presente a chefes e guerreiros – e, enquanto um homem podia ter várias mulheres, a mulher que cometesse adultério podia ser punida com a morte. Como os identitários se recusam a ver essas coisas, agridem e execram quem quer que chame a atenção para elas. Na verdade, para lembrar aquele slogan da polícia novaiorquina, a política deles é de “tolerância zero”.

Por medo, covardia ou complacência, são raríssimos os intelectuais que ousam criticar perseguições promovidas na universidade e fora dela. Como romper essa espiral de silêncio?

Risério:
 O silêncio e a covardia dos políticos são atestados de cinismo, evidentemente, mas também é até mais compreensível do que o silêncio e a covardia dos intelectuais, já que o cinismo é uma das peças principais da “caixa de mágica” deles. Os intelectuais, ao contrário e ao menos em princípio, deveriam se manifestar com clareza contra o fascismo identitário e suas ações persecutórias. Mas essa história do “em princípio” dificilmente é confirmada pelos fatos. Renato Janine Ribeiro e outros intelectuais “de esquerda” falaram do fascismo de direita tentando impedir e impedindo pessoas críticas ao atual governo de falarem em feiras literárias como a de Paraty, que hoje mais sugerem arraiais juninos do identitarismo. Mas eles silenciam quando a mesma coisa é feita pela esquerda. E olha que a esquerda identitária começou a fazer isso bem antes, entre nós. Já em 2013, na feira literária de Cachoeira do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, não deixaram Demétrio Magnoli falar, atirando inclusive uma cabeça de porco ensanguentada em direção à mesa de onde ele falaria e praticamente o expulsando da cidade. É hilário, mas, apesar de Stálin, Mao Zedong e PolPot, a esquerda encena a farsa de que se acha imune ao fascismo. É muito cinismo, também.

Quando ouço ou vejo essas coisas, não resisto e acabo lembrando a seguinte história. Em 1932, na Alemanha, Adolf  Hitler lançou sua candidatura a chanceler. Em oposição a ele, a chamada “coalizão de Weimar”, reunindo sociais-democratas, católicos e liberais, apoiou a tentativa de reeleição do marechal Hindenburg. E os comunistas lançaram candidato próprio. A parada ficou para ser decidida então no segundo turno, entre Hitler e Hindenburg. Nesse segundo turno, os comunistas votaram maciçamente em Hitler. Adiante, como sempre me lembra um amigo, o Pacto Molotov-Ribentrop consagrou o parentesco entre os dois totalitarismos... No meu livro, digo que os stalinistas que levaram Maiakovsky ao suicídio são monstruosamente idênticos aos nazistas que levaram Walter Benjamin ao suicídio. E ponto final. Agora, como romper a “espiral do silêncio”? Entrando em campo com clareza e firmeza, sem abrir mão dos fatos, sem temor, botando os pingos nos is. Não se faz isso porque, ao contrário do que nossos professores querem nos fazer crer, a covardia intelectual é coisa mais do que comum, coisa rotineira mesmo, no dia a dia do ambiente acadêmico.

Você não tem receio de se tornar vítima de um linchamento por parte daqueles que detêm o virtual monopólio da fala na academia? Em outras palavras, não teme se tornar mais um alvo do fenômeno que seu livro denuncia?

Risério:
 Não, não tenho medo de nada. E essa gente já me xinga de todo jeito, sempre que tem oportunidade. Me chamam de canalha, fascista, racista etc. Eles fazem de tudo para me intimidar, me silenciar. Na Bahia, onde moro, não só os identitários, o PT me cerca, me ameaça, me fecha todas as portas, complicando muito, inclusive, minha sobrevivência material. Cheguei a ser colunista de um jornal lá, e o governo petista, que controla tudo na província com os mesmos métodos de Antonio Carlos Magalhães, exigiu minha demissão. Deixei de escrever no jornal, na imprensa local. Mas não adianta. Não vou parar de pensar nem de dizer o que penso. No meu doce exílio na Ilha de Itaparica, sob os signos de José de Anchieta e do meu amigo João Ubaldo Ribeiro, montei uma plataforma de lançamento de mísseis político-culturais. E não vou parar de lançá-los. Esta é, na verdade, minha principal diferença com meu amigo Francisco Bosco, autor de “A vítima tem sempre razão?”. Ele, no fundo, tem um pé plantado no identitarismo. Parece mesmo acreditar na legitimidade intelectual e política do binarismo maniqueísta. Quer convencer identitários e trazê-los a outro aprisco, num horizonte mais moderado. É uma coisa de aparar arestas e promover a conciliação. Não acredito nisso. Não acredito que seja possível reconverter fanático. E não escrevo com essa intenção. Eles são irrecuperáveis. Logo, vou para a guerra. Não escrevo para eles, mas para o conjunto da sociedade, que é onde eles podem ser derrotados.

Você acredita que artistas de esquerda foram cooptados por um projeto de poder? Concorda com a frase de Millôr Fernandes que recomenda desconfiarmos do idealista que lucra com seu ideal?

Risério:
 É impressionante a atração da “classe artística” – de direita, de centro, de esquerda, de tudo – por dinheiros estatais. Querem que o governo – vale dizer, o país, a sociedade – financie todas as suas fantasias. Pensam que o Estado é uma vaca e que deve assegurar-lhes o direito de, sempre que desejarem, entrar no curral para ordenhá-la. De um modo geral, dá vontade de repetir para essa gente, ligeiramente alterada, a célebre frase de John Kennedy: não pergunte o que o Estado pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer pelo Brasil... Mas isso não foi – nem precisa ser – sempre assim. Para não recuar muito na História, podemos nos limitar à segunda metade do século 20. A bossa nova, a poesia concreta, o cinema novo e o tropicalismo – vale dizer, nossas maiores e mais brilhantes criações estético-culturais – aconteceram sem editais, sem patrocínio oficial, sem leis de incentivo.

E dou também um pequeno, recente e bem significativo exemplo. Quando Ana de Holanda era ministra da Cultura, seu irmão Chico Buarque decidiu corretamente que não seria recomendável buscar patrocínio do MinC. Percorreu o país inteiro com um belo show, sem qualquer incentivo fiscal do Estado. Um outro aspecto, que acho de alta relevância: desenvolver políticas públicas para a cultura, no Brasil, não significa bancar uma clientela preferencial, financiar artistas e intelectuais. Atuando na esfera da administração pública na Bahia, por exemplo, criei e coordenei um programa de preservação da integridade territorial e física dos terreiros de candomblé. Mais tarde, entre Brasília e São Paulo, formulei o projeto geral para a implantação do Museu da Língua Portuguesa. Além disso, boa parte dos órgãos públicos “de cultura” hoje, no Brasil, vai derrapando solenemente na maionese identitária: o que importa não é a qualidade do que se faz, mas a ação afirmativa. Ou seja, para lembrar uma expressão perfeita da socióloga Lúcia Lippi, caíram no conto do vigário da “institucionalização da compaixão”.

Você afirma que o sistema educacional brasileiro se tornou uma fábrica de ignorância. Por quê?

Risério: É uma constatação. Só. Antigamente, a gente dizia que era preciso ensinar os analfabetos a ler e escrever. Hoje, podemos dizer que é preciso ensinar os universitários – e os professores universitários – a ler e escrever. É tão simples assim.

Os movimentos em defesa das minorias começaram para defender a diferença, a "outridade". Como foi possível que esses movimentos se tenham tornado, segundo você afirma, tão intolerantes com a divergência?

Risério: 
O melhor é recontar a história porque aí a deformação identitária vira fratura exposta. Esses movimentos – gays, mulheres, pretos etc. – surgiram ou ressurgiram ao longo da década de 1970, no horizonte de nossa luta geral pela reconquista da democracia no Brasil. Todas essas movimentações – na época, “de minorias”; hoje, identitárias – se projetaram então, ganharam visibilidade política e social, no contexto da luta em defesa do outro. Da luta pelo reconhecimento do outro, pelo respeito ao outro. Foi o momento maior, pelo menos em nossa História recente, de defesa e afirmação da outridade. Agora, aí vem a contradição: vitoriosos em nome do reconhecimento do outro, a primeira coisa que esses identitários fizeram, ao se afirmarem vitoriosamente na cena brasileira, foi justamente negar e combater o outro. Promover um ataque feroz e sem tréguas à outridade. Assim, negros, fenotípicos ou simbólicos, não querem saber de conversa com não-negros. Mulheres, heterossexuais ou lésbicas, desde que “rad-fems”, não querem saber de homens palpitando em assuntos femininos etc.

O que começou como uma luta pelo reconhecimento do outro termina agora como uma luta que rejeita o outro, a diferença, a outridade. É uma negação muito estranha, mas que deve ser entendida também como a luta por um monopólio da fala que se traduz, objetivamente, em reserva de mercado: só negros podem falar de assuntos negros; só mulheres podem abordar questões femininas. É a guetificação e a celebração da guetificação, inclusive porque isso assegura verbas, fontes de financiamento, controle político-ideológico etc. Toma-se então o outro, caricaturalmente, como inimigo. E assim as movimentações se encorpam numericamente, ampliando o número de seus fiéis. Claro: sabemos muito bem que o caminho mais curto para conquistar a massa não é o da complexidade, das nuances, dos matizes enriquecedores. É o caminho do binarismo maniqueísta, que gera leituras tão fáceis quanto falsas da realidade envolvente.

De forma sintética, quais são as suas críticas ao que você chama de "racialismoneonegro"?

Risério:
 O problema principal do nosso racialismo neonegro é pretender substituir a experiência histórica e social de um povo pela experiência histórica e social de outro povo. E assim substituem a formação histórico-social brasileira pela norte-americana, numa típica conduta de colonizados. Nossos processos configuradores são totalmente distintos. Além disso, em matéria de relações inter-raciais, os Estados Unidos não são exemplo nenhum para o mundo. Muito pelo contrário, são uma anomalia planetária: o único país do mundo a não reconhecer oficialmente a existência de mestiços de branco e preto. Outra coisa é que nossos racialistas fecham os olhos para a realidade do assassinato espiritual do negro africano nos Estados Unidos, sob a poderosíssima pressão do poder puritano branco. Tanto que lá inexistiam orixás, terreiros, babalaôs etc., até que eles começaram a chegar pelas migrações antilhanas, pela perseguição à “santería” cubana, promovida por Fidel Castro. No Brasil, religião negra é candomblé. Nos Estados Unidos, é a variante negra do protestantismo branco. Martinho Lutero – em inglês, Martim Luther – King era um pastor evangélico, não um babalorixá.

Sempre digo que, se tivesse acontecido, no Brasil e em Cuba, o que aconteceu nos Estados Unidos e na Argentina, não teríamos hoje um só deus africano, um só orixá, em toda a extensão continental das Américas... Outra coisa é que os racialistas neonegros idealizam ao extremo a tal da “Mama África”. Daí, ficam surpresos quando dão de cara com a realidade mais ostensiva, atualmente, de países como Nigéria e Angola, que é a realidade da exploração do negro pelo negro. A África negra se tornou um rosário de ditaduras corruptas, com elites negras multimilionárias e o povo negro na miséria. Nossas feministas neonegras também fecham os olhos para um aspecto essencial da vida de Ginga, a rainha de Matamba, que não só tinha escravas pretas como as usava como poltronas, sentando-se durante horas sobre seus dorsos nus, enquanto fazia tratativas políticas, comerciais ou militares. Apenas para tocar mais uma tecla, nossos neonegros, que são todos variavelmente mulatos, ficam perplexos quando tomam conhecimento do fortíssimo preconceito contra os mulatos que vigora em boa parte da África Negra. Costumo observar que Barack Obama jamais ganharia uma eleição na Nigéria ou em Angola: seria rejeitado pelas massas negras pelo simples fato de não ser preto, mas mulato. Aliás, em Angola, os mulatos são tratados pejorativamente como “latons”.

O feminismo estaria passando pelo mesmo processo de cooptação política e sectarização?

Risério: 
O feminismo contracultural de Betty Freedan, Germaine Greer e Gloria Steinen degringolou no neofeminismo puritano-fanático de Andrea Dworkin e similares. Elas assumiram um discurso maluco que abole totalmente a história. Imaginam um estupro original, ocorrido às primeiras luzes da História da espécie, e congelam tudo aí: acreditam que aquele suposto estupro pré-histórico se repete sempre, até os dias atuais, sempre que um homem e uma mulher vão para a cama. Qualquer relação heterossexual é colocada então sob suspeita. Catherine Deneuve e algumas intelectuais e artistas francesas reagiram contra isso, defendendo o livre exercício da sexualidade e condenando o neofeminismo norte-americano que trata o homem como inimigo. E outra mulher, Camile Paglia, definiu bem: essas neofeministas são puritanas fanáticas.

Como se não bastasse, também muitas neofeministas se fazem de cegas, a depender da conveniência. Veja-se o caso do “blackpanther” Eldridge Cleaver, relatado por ele mesmo em seu livro “Soul on Ice”. Cleaver conta aí que estuprou uma mulher branca como “um ato de insurreição”, a fim de “sujar” as mulheres do homem branco. Mais ainda: Cleaver escreve, com a maior tranquilidade do mundo, que, antes de estuprar brancas, treinou no gueto, currando pretas pobres! E as neofeministas nunca disseram nada sobre isso. Nem contra o estupro, nem contra o racismo de Cleaver diante das moças pobres do gueto. Angela Davis preferiu não tocar no assunto. É impressionante. E mostra a que ponto as coisas podem chegar: identitários não condenam crimes cometidos por identitários. É uma noção muito estranha de justiça.

Que avaliação você faz das políticas de cotas e dos movimentos de ação afirmativa, como conceito e como resultados práticos? O que pensa do conceito de dívida histórica?

Risério:
 Não acho que cotas sejam realmente necessárias e digo isso a partir da realidade dos asiáticos e seus descendentes na sociedade brasileira. Não existem cotas para “amarelos”. No entanto, a ascensão social dos amarelos, no Brasil, é um fato notável. Mas, se querem implantar políticas de cotas, elas não devem ser étnicas, raciais. A razão é simples. Nem todo preto é pobre, nem todo pobre é preto. No Brasil, há pobres de todas as cores. Entre numa favela em Santa Catarina que isso fica bem explícito. E penso que não temos o direito de privilegiar, em meio às massas pobres do país, apenas um determinado segmento étnico. Isso não tem nada a ver com democracia ou justiça social. Então, se é para ter cotas, que elas não sejam simplesmente “étnicas”, mas sociais.

Agora, essa conversa de “dívida histórica” é picaretagem. Se quiserem, comecem a cobrar, primeiramente, da classe dominante negra lá na África, que encheu as burras com sua participação decisiva no tráfico de escravos. Os nagôs e os orixás só foram parar na Bahia porque foram derrotados em guerras contra os daomeanos, sendo então escravizados e vendidos para cá. Reis do Daomé chegaram, inclusive, a enviar embaixadas à Bahia, na tentativa de assegurar para eles o monopólio da venda de escravos para os baianos. Até hoje, as classes dominantes na África Negra gostam de fazer esse truque, de enganar o povo, dizendo que todos eles foram vítimas do “homem branco”. É mentira. Recorrem a esse expediente de botar tudo na conta da “exploração branca” a fim de esconder a exploração a que elas mesmas submeteram – e ainda hoje submetem – os povos negros. As classes dominantes negras não foram vítimas, foram sócias dos brancos no comércio transatlântico de carne humana.

Que análise você faz das políticas públicas racialistas promovidas pelos governos de FHC e Lula? De que forma elas contribuíram para o fortalecimento do que você chama de fascismo identitário?

Risério: 
A minha impressão é de que eles não entenderam bem ou não prestaram a devida atenção, lá no início, no que estava começando a acontecer. Nem pensaram nas consequências de muitas coisas. De Sarney a Lula, porque a política racialista de caráter “compensatório” começa com Sarney e ganha extrema visibilidade com a criação da Fundação Palmares, que foi a entidade que, com seus procedimentos enviesados, criou mais quilombos no Brasil do que Zumbi seria capaz de sonhar. Fernando Henrique não se tocou com a grande deformação pedagógica realizada sob seu nariz, com a gravação de uma contra-História esquerdista do Brasil, invertendo tudo da primeira História oficial de Varnhagen e companheiros, nos parâmetros curriculares do ensino.

No caso de Lula e do PT, penso o seguinte. Lula, Dirceu etc. estavam concentrados em política e em caminhos para chegar ao poder. Não tinham qualquer interesse específico ou especial em discursos de “minorias”, como então se dizia. Eles apenas abrigaram essas minorias no partido e deixaram que elas se movessem por conta própria. Como não tinham tempo ou disposição para discutir seus discursos, tomaram uma atitude curiosa: sacralizaram os discursos dos “oprimidos”. Dentro do PT, tudo que índio, preto, veado ou mulher dissesse, não se discutia. O negócio era celebrar os oprimidos, dar voz aos que nunca tiveram voz. E isso está mesmo na base da formação do fascismo identitário.

Que caminhos você visualiza para que a sociedade brasileira saia desse apartheid maniqueísta e dessa guerra de narrativas que nos divide a ponto de rompermos relações com amigos e familiares?

Risério: 
Temos a polarização político-ideológica e as polarizações identitárias. No primeiro caso, só há uma saída: deixar petistas e bolsonaristas de lado – e partir para fortalecer o campo democrático. O problema é que esse próprio “campo democrático” não parece realmente disposto a fazer isso, no sentido simples de que, na prática, se recusa a empreender uma releitura crítica rigorosa de sua trajetória e do entendimento do processo que veio das manifestações de junho de 2013 à vitória eleitoral da extrema direita na eleição presidencial de 2018.

No segundo caso, é preciso dessacralizar os identitários. Desmantelar aura e auréola de vítimas e mártires que pretendem se colocar acima de tudo, como juízes e algozes implacáveis das coisas da vida e do mundo. Combater seus “tribalismos”, sua glorificação do gueto, seus expedientes fascistas. Deixemos de parte as exacerbações particularistas, setoriais, e vamos voltar a nos mover no campo da maioria, nas águas mais vivas do conjunto da sociedade brasileira. O que digo é isso: precisamos superar o apartheid identitário e reencontrar a democracia. Em todos os campos do pensar, do sonhar, do imaginar e do fazer.

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