ELVIA BEZERRA, AUTORA DE "MEU
DIÁRIO DE LYA"
Como você conheceu Lya
Cavalcanti?
Conheci Lya em 1988. Lembro perfeitamente de quando a vi entrar
na sala da doutora Nise da Silveira, na hora do chá, exclamando:
"Nise, somos duas bacantes condenadas à austeridade". Fiquei impressionadíssima
com o vigor, o brilho com que ela falava. Vi diante de mim uma jovem
de 81 anos.
Uma personagem em potencial?
Não, não, imagina! Olhei-a com grande admiração porque a dra. Nise
tinha me avisado que ela havia sido grande amiga de Guimarães Rosa,
de quem sou fã absoluta. Fiquei cheia de curiosidade de conhecê-la,
mas a exuberância de Lya me inibia. Só no encontro seguinte tive
coragem de dizer que adorava a obra rosiana. Foi o suficiente para
que iniciássemos uma amizade que durou até a morte dela, aos 91
anos, em 1998, exatamente dez anos depois de nosso primeiro encontro.
Durante esse período jantávamos juntas todas as quartas-feiras.
E o que ela contava de especial
sobre Guimarães Rosa?
Ah! coisas simples, dessas que a gente não imagina que acontecem
no cotidiano dos grandes mitos. Conheceram-se em Londres, durante
a Segunda Guerra, quando ele era primeiro secretário na Embaixada,
em Paris. Os dois tinham a mesma crença em "forças ou correntes
muito estranhas". Certa vez, Lya tentou escrever um conto. Mostrou
a Rosa a primeira versão, e ele vociferava, com a folha de papel
na mão: "Não, não, não é assim! Você começou em sustenido e depois
não sabe, não pode continuar. Não! Não é assim!" Quando ele escreveu
Campo Geral, leu para ela, por telefone, de Cordisburgo, durante
quatro horas seguidas, a história de Miguilim. Interrompia a leitura
dizendo "peraí, Lya, que eu vou comer uma banana". O episódio dessa
leitura telefônica está registrado na dedicatória que ele fez pra
ela em Corpo de baile, e que ilustra o meu livro.
Mas então, como surgiu a idéia
de escrever sobre Lya?
Eu ficava inquieta, depois dos nossos jantares, lembrando nossas
conversas. Algumas vezes registrei na minha agenda os episódios
que Lya me relatava. Outras vezes, ela fazia apenas uma referência.
Eu anotava. Lya considerava o período que tinha vivido em Londres,
durante a Segunda Guerra, o mais feliz de sua vida. Ela tinha viajado
para Londres em 1942 - durante a guerra, portanto - para encontrar
o marido, Geraldo Cavalcanti, jornalista na BBC de Londres. Lya
me contava essas coisas com uma naturalidade espantosa, e isso me
impressionava. Ela era fã dos ingleses, da coragem com que enfrentavam
o dia-a-dia em guerra, sem uma reclamação. Fui me interessando mais
e mais. Anos depois, folheando minhas agendas, achei que aquele
material não podia se perder, e comecei a escrever, sem pretensão.
Depois mergulhei na pesquisa, e aí começou a surgir o livro.
O que ela fazia?
Aqui no Brasil era secretária da presidência na Câmara dos Deputados.
Tirou uma licença, e, quando chegou em Londres, foi convidada para
fazer, na rádio, um relato sobre a sua viagem. William Tate, na
época diretor do Serviço Latino-Americano da BBC, gostou tanto do
texto que a contratou imediatamente. Assim, de secretária Lya passou
a cronista da BBC. Era a época de Antônio Callado, Simone Ruffier.
Depois chegaria J. Veiga e outros. Consegui recuperar uma parte
da participação dos brasileiros no Serviço Latino-Americano da BBC
e do cotidiano vivido por eles.
Muito penoso?
Que nada! Lya, desorganizadíssima, vivia desapontada com a desnecessidade
de grandes sacrifícios. Dizia-se "heroína em branca nuvem". Havia
uma ligação forte entre os jornalistas e os funcionários da embaixada
do Brasil. Paschoal Carlos Magno era um deles. Além da casa de Lya,
que funcionava como uma espécie de "embaixadazinha" paralela, o
grupo se encontrava nos restaurantes do Soho ou no elegante Claridge's
Hotel.
E depois...
Ela voltou ao Brasil e fez, inicialmente, um programa chamado Dois
dedos de prosa, na então PRA-2, hoje Rádio Ministério da Educação.
Em 1964, fez, com Drummond, o programa Quase Memórias, que constou
de uma série de oito sessões de entrevistas, realizadas aos domingos.
Um "papo radiofônico", como chamou o poeta. Se não estou enganada
essa é a mais longa entrevista jamais concedida por ele. Foi publicada,
por partes, no Jornal do Brasil, e posteriormente recolhida em livro
com o título de Tempo, vida poesia: confissões no rádio.
De que maneira entram os animais
nessa história?
Bem, Lya e Drummond sempre gostaram de animais. Quando ela fazia
o Dois dedos de prosa contava com o apoio do poeta-cronista que,
assinando uma coluna no Correio da Manhã, fez com a amiga, durante
longo período, uma espécie de dobradinha oral e escrita pela causa
dos animais. Vem daí o apelido de "meu capanga" que Lya deu ao poeta.
São inúmeras as crônicas de Drummond sobre animais. Ele falou maravilhas
sobre o assunto. Preocupou-se com muitas questões relativas aos
bichos. Em 1970 Lya e Drummond editaram um jornaleco, mimeografado,
de oito páginas intitulado A Voz dos que Não Falam. É comovente
constatar o empenho dele, já poeta famoso, editando um jornalzinho
tão precário. E foram muitas as campanhas que os dois fizeram juntos.
Ele falava sobre Lya nas crônicas?
Muito. Escreveu especialmente sobre ela, como em "Lya, a louca admirável",
que é uma maravilha. É que Drummond é tão rico, abordou tantos temas...
Suas crônicas sobre animais, em que a presença de Lya é constante,
podiam ser reunidas em um volume, a exemplo do que foi feito com
as que escreveu sobre futebol.
Quer dizer que a admiração era
recíproca?
De fato. Drummond escreveu uma carta-bilhete a Lya, que é uma declaração
de amor fraterno. Uma beleza, está reproduzida no livro. Ela era
uma pessoa com contradições humanas intensas, tão verdadeira na
sua tremenda desorganização! E Drummond soube entendê-la. Foi dos
poucos, porque ela escapa a qualquer convencionalismo.
Como você definiria Lya Cavalcanti?
Eu não penso em definir uma personalidade tão extraordinária. Mas
posso dizer que dois aspectos me impressionavam: o primeiro era
a alegria de viver. A vida para Lya era uma festa. Ela vivia a alegria
de pensar que o dia seguinte podia lhe trazer uma bela surpresa.
Isso aos oitenta anos... Depois, com sua autenticidade, Lya representou
para mim a essência das contradições na mais humana imperfeição.
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