“A PERVERSÃO COMEÇA
NA FORMAÇÃO”, DIZ EX-PM CONDENADO
Na penitenciária de Bangu, ex-soldado
da PMERJ Rodrigo Nogueira Batista fala sobre cultura violenta da
corporação, corrupção dos oficiais e
o revanchismo entre policiais e criminosos
Ciro Barros

O ex-soldado da PM, Rodrigo Nogueira, preso em Bangu 6 desde 2009, durante entrevista a Agência Pública, fala de seu livro "Como nascem os monstros" (TOPBOOKS). Foto: Bel Pedrosa, 23/06/15.
Com quase dois metros de altura, mais de
100 quilos entre músculo e alguma gordura, o ex-soldado da
Polícia Militar do Rio de Janeiro Rodrigo Nogueira Batista,
de 33 anos, é um “monstro” como a gíria
popular classifica os brutamontes do tamanho dele. A orelha esquerda
estourada pelos tatames de jiu-jitsu e o nariz meio torto ajudam
a compor a figura do ex-PM preso em Bangu 6 (Penitenciária
Lemos de Brito). Essa prisão, destinada prioritariamente
a ex-policiais, bombeiros, agentes penitenciários e milicianos,
faz parte do Complexo Penitenciário de Bangu, bairro da zona
oeste do Rio de Janeiro. Preso desde novembro de 2009, Rodrigo foi
condenado pela Justiça Militar a 18 anos por furto qualificado,
extorsão mediante sequestro e atentado violento ao pudor
e a 12 anos e 8 meses no Tribunal do Júri por tentativa de
homicídio triplamente qualificado.
Segundo a condenação judicial,
Rodrigo e seu então parceiro, o cabo Marcelo Machado Carneiro,
abordaram a vendedora ambulante Helena Moreira na descida do Morro
de São Carlos, onde ela morava. Ela iria à estação
de metrô Estácio, no bairro do Estácio de Sá,
Rio de Janeiro, e levava na bolsa R$ 1.750. Os policiais a revistaram,
roubaram a quantia em dinheiro e sequestraram Helena pensando que
ela fosse mulher de algum traficante. Segundo a decisão do
juiz Jorge Luiz Le Cocq D’Oliveira, os PMs mantiveram a vendedora
sob cárcere privado por quatro horas, onde ela foi agredida
e “constrangida a praticar atos libidinosos” antes de
ser atingida por um tiro de fuzil no rosto, que teria sido disparado
por Rodrigo. Ainda segundo a sentença, a vítima se
fingiu de morta após a sessão de tortura e foi à
delegacia dar queixa. Rodrigo recorreu da sentença no Superior
Tribunal de Justiça (STJ). Ele afirma não ter cometido
o crime pelo qual foi condenado, mas diz com todas as letras que
“não é inocente”, cometeu “outros
erros” como policial, que ele não quer detalhar para
não complicar sua situação.
Ele é autor do livro “Como Nascem
os Monstros”, da Editora Topbooks, um brutal “romance
de não-ficção”, em que mistura suas próprias
histórias às histórias de outros colegas, casos
de repercussão na crônica policial e “causos”
da corporação. No livro, Rodrigo descreve com consistência
a transformação de um jovem comum, com vagos ideais
de defesa da sociedade e combate ao crime, em um criminoso fardado
que usa de sua posição para matar, sequestrar, extorquir
e prestar serviços à milícia. O resultado é
um quadro aterrador de achaque de oficiais aos recrutas, corrupção
dos batalhões e uma ácida interpretação
da visão da sociedade em relação à polícia.
"Nenhum, eu digo e afirmo, nenhum recruta
sai do CFAP [Centro de Formação e Aperfeiçoamento
de Praças] pronto para empunhar uma arma no meio da rua”,
afirma categoricamente o ex-PM. Mas logo ele vai aprender que tem
que pagar para tirar férias, para ficar nos melhores postos
da corporação e assistir aos oficiais lucrando com
a venda de policiamento. “No Morro dos Macacos, ninguém
entrava sem autorização do comando. Se um carro fosse
roubado, e o bandido fugisse com o veículo para o interior
da comunidade, sorte dele (…). Acredite, se um policial adentrar
uma comunidade sem autorização do comando, não
importa o motivo, ele responderá por descumprimento de ordem.
O morro que está ‘arregado’ não tem tiro
nem morte, basta estar com o carnê em dia”, denuncia.
“Posso garantir que, ao ingressar na corporação,
ninguém acredita que um dia vai sequestrar alguém,
roubar seu dinheiro, matar essa pessoa e atear fogo ao corpo. Pode
até ter uma vontadezinha de atirar em algum bandido (…),
mas pensar em tamanha crueldade é impossível”,
narra Rodrigo no livro. “Embaixo da casca monstruosa que envolve
esse tipo de criminoso, o policial militar que erra, também
havia (há?) um homem que um dia estudou, passou no concurso,
se formou, fez um juramento e marchava com garbo. Deu orgulho à
sua família e, pelo menos uma vez, arriscou morrer pela sociedade.”
Tenho diante de mim um monstro: alguém
condenado por um crime hediondo, mas, na própria metáfora
de Rodrigo, alguém que também é produto de
mecanismos cruéis de uma corporação cruel.
Ligo o gravador. Essa é a versão dele.
Como você entrou na Polícia Militar?
Entrei na Marinha com 18 anos, fui aprendiz de
marinheiro em Santa Catarina. Sempre gostei muito da vida militar.
Logo no começo eu já me desiludi com o militarismo
na Marinha. Eu sentia falta de realmente me sentir útil.
Quando eu tive que escolher uma especialização na
Marinha, não consegui passar nos exames para mergulhador.
Sobraram algumas áreas bem ruins e aí resolvi fazer
o curso da polícia. Passei no primeiro concurso que eu fiz,
pedi baixa da Marinha e fiquei aguardando. No fim, eu fui pra polícia.
Mais uma vez veio a desilusão. Assim que
nós nos apresentamos lá no CFAP (Centro de Formação
e Aperfeiçoamento de Praças da Polícia Militar),
onde a maioria dos praças são treinados. O CFAP deveria
ser um centro de excelência, mas para você ter uma ideia,
no primeiro dia não teve nem almoço pros recrutas.
No primeiro dia tivemos só meio expediente e o comando já
liberou todo mundo.
Você conta no livro que ali começou
uma degradação de um rapaz que tinha um ideal, queria
defender a sociedade, e começou a tomar contato com a violência
e a corrupção na corporação. Como foi
isso pra você?
O processo de perversão começa
no início da formação. Quando cheguei no CFAP,
o primeiro contato quando a gente sai do campo para a companhia
é um caminho cercado por árvores. Do alto daquelas
árvores, os policiais antigos começavam a disparar
tiros de festim e soltar bombas. O camarada que deveria ser treinado
desde o início pra policiar, já começa a ser
apresentado a uma guerra. Dentro do CFAP, a cultura dos instrutores
não é formar policiais. É formar combatentes.
E aí é que tá o problema: você formar
um combatente para trabalhar numa coisa tão complexa quanto
o aspecto social que ele vai ser inserido. Um dia o policial tá
trabalhando com um mendigo, no outro com um juiz, no outro com um
assassino, no outro com um estuprador. Para você preparar
um combatente para trabalhar nesse contexto, é muito delicado.
Demora muito. Se isso não for muito bem feito você
acaba criando monstros.
As instruções, as aulas que são
ministradas no CFAP desde o início elas começam a
mudar o viés do camarada. A minha turma não teve nem
aula de direito penal, não teve aula de direito constitucional,
não teve aula de filosofia, de sociologia. A gente chegava
na sala de aula, sentava, o instrutor falava meia dúzia de
anedotas da história da polícia militar e o resto
é contando caso (matou fulano, prendeu ciclano). Dentro do
próprio ambiente ali, os outros oficiais que coordenavam
o curso só tinham um objetivo: deixar o cara aguerrido, endurecido,
fazer esse recrudescimento da moral do indivíduo para ele
não demonstrar piedade, covardia. Eles acreditam que se o
camarada endurecer bastante ele pode preservar a própria
vida com isso. Mas isso é ruim: você cria um cachorrinho
bitolado que não consegue enxergar as coisas ao redor como
elas são.
Depois de alguns meses no CFAP, o recruta vai
estagiar e trabalhar com os antigos na rua. Como na época
era verão, existiam as chamadas Operações Verão.
Eles colocam o policial antigo armado e dois ou três “bolas-de-ferro”,
como eles chamam os recrutas, justamente por dificultar a movimentação
do antigo. Geralmente, os batalhões que recebem esse efetivo
do CFAP são os litorâneos. Aí a gente foi pro
31º, no Recreio, 23º, que é o Leblon, 19º,
Botafogo, 2º, Copacabana… Eu ficava um pouquinho em cada
um.
No período de praia, por exemplo, a gente
chegava e o antigo ficava angustiado com a nossa presença
porque queria pegar o dinheiro do flanelinha, do cara que vende
mate, da padaria. Outro exemplo: uma das instruções
que os oficiais davam antes do efetivo sair pro policiamento era:
“olha, vocês podem fazer o que quiserem, pega o pivete,
bate, quebra o cassetete, dá porrada no flanelinha. Só
não deixa ninguém filmar e nem tirar foto. O resto
é com a gente. Cuidado em quem vocês vão bater,
com o que vocês vão fazer e tchau e benção”.
A minha turma partiu pro estágio com dois meses de CFAP,
dois meses tendo meio expediente e depois rua. E aí, meu
camarada, a barbárie imperava: pivete roubando, maconheiro…
Quando caía na mão era só porrada e muito gás
de pimenta. Foi ali que eu tive contato com as técnicas de
tortura que a Polícia Militar procede aí em várias
ocasiões. Você vê agora o caso do Amarildo. O
modus operandi vai se repetindo, evoluindo, até que toma
uma proporção mundial. Eu conheci aqueles recrutas
que participaram do caso Amarildo lá no presídio da
Polícia Militar e eles foram formados depois do meu livro.
O último parágrafo do meu livro diz que os portões
do presídio da polícia militar estarão sempre
abertos para receber cada novo monstro nascente. E que venha o próximo.
E continuam nascendo os monstros, um atrás do outro. Aqueles
policiais que participaram do caso Amarildo, pelo menos de acordo
com o que o inquérito está investigando eles estão
fazendo as mesmas práticas que eu já fazia, que o
meu recrutamento já fazia, que outros fizeram bem antes de
mim e que já vem de muitos anos. Vem de uma cultura.
Como um policial aprende a torturar?
É no dia a dia mesmo. O nosso direito
dificulta o trabalho do policial em certos aspectos. Por exemplo,
um pivete roubou uma coisa de um turista e correu. O policial corre
atrás do pivete e pega o pivete. Quando ele consegue chegar
no pivete, ele já jogou o que ele roubou fora e ele é
menor de idade, não pode ser encaminhado para a delegacia.
Porra, mas o policial sabe que ele roubou. E aí entra o revanchismo,
a hora da vingança. Primeiro lugarzinho separado que tiver
(cabine, atrás de um prédio, dentro dos postos do
guarda-vidas) é a hora da válvula de escape. E eu
posso assegurar para você: da minha turma do CFAP, de dez
que se formaram comigo, nove jamais pensaram que passariam por um
processo de desumanização tão grande. O camarada
começa a ver um pivete levando choque, spray de pimenta no
ânus, no escroto, dentro da boca e não sente pena nenhuma.
Pelo contrário, ele ri, acha engraçado.
E tem um motivo: se nesse momento que o mais
antigo pegou o pivete e começa a fazer isso, se você
ficar sentido, comovido por aquela prática, pode ter certeza
que vai virar comédia no batalhão, vai ser tido como
fraco. Vai ser tido como inapto para o serviço policial.
E aí você vai começar a ser destacado, a ser
visto como um elemento discordante desse ideal que a tropa criou.
Se eu tô com você, mas você não tem disposição
pra bancar o que eu tô fazendo com um vagabundo, na hora que
der merda é você que vai roer a corda. Na hora que
o vagabundo me der tiro, você não vai ter peito pra
meter tiro nele. No fim, você vai ser afastado: vai ficar
no rancho, na faxina ou em algum baseamento a noite toda.
Você vai formando e selecionando por esse
critério. Se você é duro, você vai trabalhar
na patrulha, no GAT (Grupamento de Ações Táticas),
na Patamo (Patrulhamento Tático Móvel)… Agora
você que é mais sensato, que não vai se permitir
determinadas coisas, não tem condições de você
trabalhar nos serviços mais importantes. Não tem como
o camarada sentar no GAT se não estiver disposto a matar
ninguém. Não tem como. E não é matar
só o cara que tá com a arma na mão ali, é
matar porque a guarnição chega a essa conclusão:
“Não, aquele cara ali a gente tem que matar.”
Aí é cerol mesmo. Se você não estiver
disposto a participar disso aí, tu não vai sentar
no GAT, não vai sentar numa patrulha nunca.
No livro, você descreve o constante
clima de guerra e revanchismo entre policiais e traficantes e conta
a história do recruta Sampaio…
É uma das partes verídicas do meu
livro, fiz questão de chamar a atenção pra
esse caso do Sampaio. Quem sabe para a família também
ler e sentir que alguém lembrou dele. Esse caso foi muito
sério… Foi pesado pra caraca… [Rodrigo chora].
No livro eu coloco que o protagonista conhecia, mas não tinha
muita intimidade com o Sampaio. Eu particularmente conhecia bem
o Sampaio. Um dia eu cheguei para trabalhar no CFAP, tava de serviço
na guarda. Era sexta-feira de carnaval. Quando eu cheguei, já
ouvi a notícia que o Sampaio tinha sido assassinado com 19
tiros, lá em Caxias [Duque de Caxias, município da
região metropolitana do Rio]. O Sampaio era filho caçula
de uma família relativamente grande, tinha vários
irmãos, a mãe dele era uma senhora bem velhinha. Era
pra ele estar de serviço comigo naquele dia. Ele ia todo
dia pro CFAP de ônibus. Naquele dia, ele ia de carona com
um outro companheiro lá do CFAP. Ele tava ali parado no ponto
de ônibus, esperando o cara passar de carro e passaram alguns
bondes de vagabundos voltando do baile. Ele morava numa área
onde tinha traficantes, mas, como ele era recruta e cria da área,
ele achou que teria uma tolerância com a presença dele
pelo menos até ele se formar e conseguir sair. Ele tava no
ponto às cinco da manhã, os vagabundos voltavam do
baile e alguém o reconheceu. Eles fizeram a volta e começaram
a atirar nele ali. Ele correu, correu muito, quase 800 metros. E
foi cair lá perto de uma ruazinha de barro com 19 tiros de
calibre .380. Todos eles nas costas. Todos.
A gente já chegou no CFAP com essa notícia
próximo a nossa formatura. Aí pediram voluntários
para a guarda fúnebre e eu fui pro enterro dele. Foi uma
representação da polícia lá. E pô,
bicho, ali eu vi como… [Rodrigo chora novamente]. Se eu tava
rachado, ali foi o ponto de quebra. Pô cara, ele tinha 19
anos. 19 anos…

O ex-soldado da PM, Rodrigo Nogueira, preso em Bangu 6 desde 2009, durante entrevista a Agência Pública, fala de seu livro "Como nascem os monstros". Chora ao falar de Sampaio, recruta que foi morto aos 19 anos. Foto: Bel Barbosa
Como o clima de guerra entre criminosos e
policiais influencia na formação do policial no dia
a dia?
Depois que eu vi o Sampaio no caixão lá
com flores até o pescoço, só a cara pra fora,
a família dele chorando… O comandante do CFAP nem quis
ir ao enterro, nenhum oficial foi. A kombi que a gente usou pra
levar o corpo até o enterro, a gente teve que empurrar porque
não funcionava. Depois que eu vi esse descaso todo, eu pensava:
“porra, o Sampaio morreu. Tomou 19 tiros. Não é
possível que vai ficar por isso mesmo”. Não
teve uma palestra de alguém pra conversar com a gente, não
teve um inquérito, não teve nada. Ninguém sabe
até hoje quem deu 19 tiros num recruta que estava desarmado.
Ninguém sabe. Ali eu pensei: “se eu der mole, vai ser
um contra um e de caixão livre. Alguém vai ter que
pagar, isso aqui não vai ficar de graça não.
Vou ter que escolher de que lado que eu tô.” E nós
nos formamos, e eu fui começar a trabalhar na rua.
Quando eu cheguei no batalhão, eu não
poderia trabalhar numa coisa que fosse muito perigosa. Eles colocaram
a gente num serviço de P.O, que é o Policiamento Ostensivo
a pé. Eu trabalhei muito na área da Tijuca. Naquela
época não tinha UPP ainda, não existia. Então
a Tijuca, agora é menos, mas era uma região muito
complicada de se trabalhar pela quantidade de morros ao redor. Eu
trabalhava na rua 28 de setembro e no fim dessa rua era o Morro
dos Macacos, que era o único morro da facção
criminosa ADA (Amigos dos Amigos) em uma área cercada pelo
Comando Vermelho. Era um morro muito forte, os bandidos eram muito
aguerridos no combate. Não tinham medo de matar polícia,
de dar tiro em polícia. É uma área onde passa
muito ladrão, principalmente do Jacarezinho. Eles vinham
de lá, atravessavam o túnel Noel Rosa, roubavam na
28 de setembro e voltavam pro Jacarezinho, mudavam de área
de batalhão e era difícil de pegar. Ali, bicho, meio
dia eu já dei tiro nos outros ali em saidinha de banco. A
primeira vez que eu disparei a minha arma de fogo foi assim, meio
dia e pouco, no Itaú da 28 de setembro. Tinha acabado de
assumir o serviço. A gente vinha de ônibus até
a 28 de setembro, eu pus os pés na rua e um camarada apontou:
“Tão roubando, tão roubando”. Aí
eu vi um cara saindo do banco e sentando na moto. Já puxei
a arma, falei pra ele parar, e o garupa se encolheu. Aí o
motorista acelerou e eu atirei. Só que eu errei e o cara
escapou. Ali eu vi que o troço é de verdade, que se
der mole, fechar o olho, vai ser baleado. Aconteceu também
quando o Borrachinha foi baleado [episódio descrito no livro].
O Borrachinha tomou um tiro de .380 no meio do olho, foi pro hospital.
E não passava uma semana sem que alguém próximo
a mim tivesse levado um tiro. Policial que era baleado quando tentavam
assaltar…. Quando eu tava na patrulha todo dia tinha. Todo
dia, quando eu tava trabalhando na DPO, e com o rádio e eu
escutava: “Prioridade, prioridade. Assalto em tal rua”
é porque algum vagabundo tinha dado tiro em patrulha e tava
correndo. O GAT quando entrava no Morro dos Macacos, eu tava patrulhando
em volta e só ficava escutando o pau roncando lá.
E eu só ficava pensando: “pô cara, eu tenho que
ir pra lá, quero ir pra lá, quero dar tiro”.
E agora que eu tive tempo pra parar e pensar eu fico vendo como
isso é absurdo. É absurdo.
Eu via essas coisas acontecerem. Rajada de fuzil
uma da tarde nos Macacos, seis horas da tarde o cara descarregando
uma nove milímetros em cima da patrulha pra poder fugir.
Eu via isso acontecendo. Agora eu penso como isso é surreal,
é uma guerra. Essa banalização do confronto
entre polícia e bandido é singular no Rio de Janeiro.
O criminoso aqui no Rio de Janeiro não
tem receio de dar tiro no policial, nenhum receio. Não tem
receio de jogar uma granada em cima do policial que entra numa favela.
Tem noção do que é isso? Escutar uma granada
explodindo e você saber que é pra você? Bicho,
isso deixa qualquer um pirado. Você tá passando com
a sua patrulha e de repente você escuta os tiros atrás.
O cara fica louco. Bicho, você dentro de um blindado, parece
que você tá no Iraque ou na Síria cara. Quando
você embica de blindado dentro de um acesso à favela,
é tiro batendo no vidro, na lataria. Granada explodindo.
Não tem como o cara não ficar louco. Isso cria um
stress no policial que tá ali direto, que fica difícil
do policial equacionar isso na cabeça dele. Você imagina
uma escala de 24 horas por 72 de descanso. Então o cara chega
na segunda-feira, vai trabalhar. Entra no blindado, bota colete,
fuzil, carregador e vai pra favela. Troca tiro, leva tiro, mata
um, dois, vai pra delegacia levar a ocorrência. Vão
pro batalhão. Passa terça, quarta, quinta. Sexta-feira
ele entra, vai pra favela de novo, troca tiro de novo, mata mais
um. Não tem como se conservar são.
O monstro é uma metáfora desse
processo de desumanização pelo qual o camarada passa
na lida diária do trabalho. Por mais que o cara ele tenha
tendências homicidas, seja violento, tenha caráter
duvidoso antes de entrar na Polícia Militar, quando ele entra
isso tudo é potencializado. É a hora disso extravasar.
Essa lida contínua com situações de confronto,
morte e violência tem que ser encarada de maneira séria
pelos gestores da Polícia Militar. A gente tem que parar
e pensar: a quem interessa deixar que esse bando de alienados fique
na rua matando e levando tiros. A quem interessa isso?
No livro você também comenta
sobre a participação dos oficiais nesse ciclo de violência
e corrupção e chega até mesmo a chamá-los
de “chefes de quadrilha”. Você diz que eles estão
no comando disso tudo. Como isso acontece?
É o coronelismo moderno. No militarismo,
não tem como uma coisa seja ela boa ou errada continuar sem
a anuência de quem tá no comando. Se eu e você
estamos na patrulha e a gente começa a agir de uma maneira
que está desagradando o comando, ele vai tirar a gente da
patrulha. Se eu e você estamos na patrulha, trocando tiros,
matando gente e a gente continua na patrulha, é porque o
comando quer que a gente continue. Dentro da estrutura da Polícia
Militar, o coronel, o comandante do batalhão é que
coordena todo esse esquema que mantém a área do batalhão
em funcionamento. Toda área de batalhão no Rio de
Janeiro tem ponto de táxi, tem clínica de aborto,
tem tráfico de drogas, tem oficina de desmanche, tem jogo
do bicho. Essas atividades só podem ocorrer enquanto o policial
não vai lá e manda parar. Por que o policial não
vai lá pra impedir? Porque ele tem determinação
pra não ir. Posso garantir pra você que qualquer policial
do Rio de Janeiro que fechar uma banca de bicho na área do
batalhão dele, no outro dia ele tá em outro batalhão.
Isso se não estiver em outra cidade. E ainda pega fama de
“rebelde”, de “problemático”.
Há algum tempo teve uma comoção
muito grande por conta de uma menina que foi fazer um aborto e faleceu,
a Jandira. Todo mundo sabia onde era aquela clínica de aborto.
Por que aquela clínica não foi fechada? Se a patrulha
for lá e fechar a clínica de aborto, o coronel vai
querer saber porque fechou a clínica. “Ah, teve reclamação”.
Ok, mas a clínica manda dinheiro pro batalhão pra
continuar funcionando. Se o policial se meter nesse esquema, ele
vai sofrer algum tipo de consequência. Não é
consequência de morte, violência, não. É
consequência administrativa. Vai ser encostado de alguma forma
e daqui uma semana a clínica vai estar funcionando de novo,
pode ter certeza.
No batalhão, você tem a administração
da lavradura militar e tem as companhias. O comandante da companhia
é quem vai definir que tipo de serviço existe dentro
das companhias (se o cara vai trabalhar na patrulha, na Patamo,
nas cabines…) A patrulha é considerada um serviço
bom. Te deixa móvel, você consegue se movimentar bastante
dentro da área do batalhão e tem possibilidade de
ganhos. Você pode extorquir o usuário de drogas, você
pode pegar um ladrão, tomar a arma dele e ficar com o dinheiro
dele e vender a arma. É diferente do serviço baseado,
que você tem que ficar parado no mesmo lugar o dia todo. Pra
você trabalhar nessa patrulha, você tem que ser indicado
pelo comandante de companhia, pois é ele quem determina onde
cada um vai ficar. Você foi indicado, beleza, vai trabalhar
na patrulha. Pra você se manter na patrulha, você vai
ter que dar alguma coisa pro comandante de companhia. Porque tem
alguém atrás de você que tá querendo
ir pra patrulha também. Na minha época, todo mundo
que trabalhava na patrulha pagava cem reais por mês pra continuar
na patrulha. Cem meu e cem do comandante da patrulha. Toda sexta-feira
à noite, o comandante da companhia pegava duzentos reais
de cada patrulha, de quem tava de serviço à noite.
Isso da patrulha. Mas ele também pega de quem tá trabalhando
num subsetor, também pega 200 reais do cara que tava na cabine,
mais um dinheiro do camarada que trabalha no trânsito. Quando
você vai ver no final do mês, esse pedagiozinho dá
uma soma boa pro comandante de companhia.
Se o cara que tá no serviço, por
exemplo, a patrulha, não quiser pagar, OK. Ele só
não vai ficar na patrulha, vai ser deslocado pra outro serviço.
Esse pedágio é uma forma do comandante receber um
dinheiro e se blindar. Ele não precisa disputar na rua o
dinheiro que ele vai receber, ele recebe dentro do batalhão.
É um tipo de achaque e corrupção muito difícil
de ser descoberto porque um policial dificilmente vai dizer que
o comandante tá extorquindo ele. Dificilmente vai dizer,
dificilmente vai conseguir provar e vai sobrar pra ele.
Por que dificilmente ele vai dizer?
Porque se ele falar pro comandante do batalhão
que o comandante da companhia tá pedindo cem reais pra ele
continuar na patrulha, a primeira coisa que o comandante do batalhão
vai dizer é: “você não tá mais
na patrulha”. Ele pode tentar produzir provas, colocar uma
câmera escondida, tentar ir mais a fundo. Mas aí, meu
camarada, ele tá assinando a própria sentença
de morte. Aí você tá querendo prejudicar o comandante
da companhia, tá querendo prender o cara. Entre a própria
tropa é visto como ofensivo, como uma coisa péssima.
Isso não vai acontecer nunca.
Esse é só mais um exemplo. Quer
outro? Pra você tirar férias, você tem que pagar
o sargenteante. Olha que absurdo. Esse dinheiro é dividido
entre o sargenteante, que é um sargento, e o capitão
que é comandante de companhia. Isso tá no filme lá,
no Tropa de Elite, não é mais novidade pra ninguém.
Mas não para por aí não. Se você não
quer mais trabalhar, você pode chegar no oficial e falar que
não quer mais trabalhar. Ele vai falar: “Ok, todo mês
o seu salário fica pra mim”. Aí o sargenteante
te coloca numa escala fantasma. Ou seja, você não existe
mais no batalhão. Você não precisa mais colocar
os pés no batalhão. Isso é bom pro cara que
trabalha na milícia, no jogo do bicho. O camarada que, por
exemplo, tá trabalhando na banca do jogo do bicho. Recebe
lá cinco mil por semana pra trabalhar no jogo do bicho. Ir
pro batalhão pra ele é ruim porque ele perde o dia
de trabalho dele no bicho. Então ele pega o salário
dele de dois mil reais, deposita na conta do comandante de companhia
e não aparece mais no batalhão. Fica só trabalhando
no jogo do bicho. Pra ele é mais jogo, porque ele não
precisa mais se expor, não precisa botar farda, ter horário,
fazer a barba. O interessante pra ele é a carteira de policial
e o porte da arma. Isso é muito comum, é fácil
de se constatar. Qualquer promotor de justiça que chegar
no batalhão de surpresa e disser: “bom dia, eu quero
o efetivo do batalhão e a escala de serviço”.
Ele vai encontrar, no mínimo, cinco, seis fantasmas. Em qualquer
batalhão do Rio de Janeiro. Isso é batata.
Esses esquemas todos nos batalhões da
Polícia Militar são muito antigos. Eles fazem parte
de uma cultura da polícia. Acabar com esses esquemas todos
vai demandar uma coisa muito complicada, que seria tirar o poder
das mãos dos coronéis.
Por isso você defende a desmilitarização?
É um primeiro passo. Quando você
vê um soldado policiando, alguma coisa já tá
errada. Ou o camarada é soldado, ou é policial. Ele
pode até ser um soldado policial dentro do quartel, mas não
na rua. O soldado tem uma premissa que é o quê? Matar
o inimigo. O soldado é formado para eliminar o inimigo e
o policial não, pelo menos não deveria. O policial,
ao contrário do que se acredita em boa parte da sociedade
carioca, ele não foi feito pra matar ninguém. O policial
não tem inimigo. O camarada que hoje tá dando tiro
no policial, ontem pode ter estudado com ele, pode ter frequentado
os mesmos lugares que ele. O criminoso é resultado da nossa
sociedade, do nosso contexto. O crime é um fato social e
o policial não pode enxergar o criminoso como um inimigo.
Não é pra matá-lo. Prendeu, leva pra lei tomar
as providências dela. Mas o que se convencionou acreditar
é justamente o oposto.
O coronel, os oficiais, acumulam muito poder
em uma figura só. O coronel tem uma área de influência
enorme dentro do batalhão dele, ele determina muitas coisas.
E o soldado não pode questionar o coronel. O soldado não
pode entrar na sala do coronel e falar assim: “Coronel, por
que eu não posso abordar aquela van pirata que tá
passando ali?” Porque isso já constitui uma transgressão
disciplinar. Desde o legalismo do militarismo, até as regras
subjetivas que regem a relação entre subordinados
e superiores hierárquicos, tudo serve para impedir o camarada
de pensar. Ele não pode virar pro comandante e falar: “capitão,
não vou pra rua porque o colete tá vencido”.
Não pode. Ele pode reclamar do colete, mas não pode
reclamar para o capitão que é quem resolveria. Quando
você tira o militarismo e coloca os profissionais de segurança
em nível equivalente, se o profissional de segurança
questionar o coronel por que ele teve que voltar das férias
pra trabalhar, o coronel não vai poder responder: “você
tá indo porque eu quero. Porque eu tô determinando
que você vá. E se você não for, vai ficar
preso à disposição”.
Você vê que essa confusão
de atribuições entre soldado e policial, elas não
se resolvem de maneira fácil. As coisas continuam acontecendo
aos olhos de todo mundo e ninguém faz nada. Por exemplo,
aquele pessoal que tava voltando de uma festa dentro do HB20 branco
e que foram perseguidos por uma patrulha. Não teve um estalinho,
uma bombinha, nada que viesse do HB20 pra patrulha e o cara deu
15 tiros de fuzil no carro, num carro em fuga. Só poderia
acontecer na cabeça de um soldado, na cabeça de um
policial não aconteceria nunca. Um policial iria correr atrás,
cercar. Mas ele não ia dar tiro em quem não tá
dando tiro nele. Só na cabeça do soldado, que acha
que tá na guerra e acha que se não atirar primeiro
vai levar tiro. O cara foi lá, deu a sirene e o carro acelerou
pra fugir da polícia. “Ah, é bandido, vou dar
tiro”. Podia ser alguém bêbado, podia estar todo
mundo fazendo uma suruba dentro do carro, podia ter uma cachaça
no carro e o cara estar com medo de ser pego, o cara podia não
ter habilitação, o cara podia ser surdo… São
milhões de coisas, mas o cara não para pra analisar
essas coisas porque ele não foi condicionado pra pensar,
a contextualizar o tipo de serviço que ele tá fazendo.
Ele foi treinado pra quê? Acelerou, correu, bala!
Aquelas crianças que tavam brincando na
rua, filmando, um correu atrás do outro. Daqui a pouco é
tiro pra todo lado e o garoto caiu agonizando. Sabe por que? Preto
e pobre correndo na favela é bala. Depois a gente vê
o que é. Foi o soldado sobrepujando o policial de novo. Ele
tava entrando num território conflagrado. Ele entrou lá
pra prender ou pra matar? Pra matar, pô. Se ele tivesse entrado
pra prender, a primeira coisa que ele ia fazer quando viu o menino
correndo era gritar pra ele parar.
A nossa sociedade carioca, principalmente da
região metropolitana, criou, até por sofrer muito
com os assaltos e tudo mais, um pensamento torto. Quando um policial
vai lá e mata um bandido, a sociedade faz o quê? Aplaude.
Toda vez que o policial entra em confronto, mata um cara que tava
fazendo o arrastão a sociedade aplaude e estimula. Só
que o policial militar tem que entender que quando ele errar a sociedade
não vai aplaudir não. A sociedade vai sentar pra formar
o tribunal do júri e vai condená-lo sem a menor vergonha.
Mas ao mesmo tempo, criou-se essa cultura de que o policial tem
que matar.
Tem uma frase sua no livro que até
vai nesse sentido, quando você escreve: “O PM só
vale o mal que ele pode causar”. Como é que o PM enxerga
essa hipocrisia da sociedade que às vezes exige o policial
e às vezes o monstro?
Se o PM andar com uma roupa humilde, pegar ônibus
pra trabalhar, se ele não andar demonstrando que tá
armado, ele vai ser encarado por aquelas pessoas que o conhecem
como um policial bobão que não faz mal pra ninguém.
Agora, se ele tá dentro de um Fusion, com uma pistola enorme
na cintura, com roupa de marca, cordão de ouro no pescoço
e mete a porrada em quem tá fazendo merda perto da casa dele.
Se ele se torna algo que realmente traz risco, ele se torna valorizado.
“Ih, pô, não mexe com o fulano não. Ele
é polícia”. Há uma glamourização
desse estado desumanizado. A sociedade valoriza mais o monstro do
que o policial e é por isso que ele tá nascendo o
tempo todo.
As nossas próprias autoridades políticas
valorizam a criação dos monstros, mas tem que ter
alguém pra eu apontar o dedo na hora que tiver dando merda.
As autoridades querem que existam monstros e tem vários exemplos
disso. Você lembra do caso do Matemático, que foi perseguido
pelo helicóptero? O camarada de helicóptero com uma
M60, atirando em um carro em fuga que não deu um tiro nele.
Enquanto isso, a esteira de tiros batendo nos muros das casas, nos
carros estacionados, em tudo que é lugar. Aquilo ali é
o exemplo da hipocrisia e de como as nossas autoridades são
parciais. Se fosse uma Patamo fazendo isso, os policiais iriam todos
presos. Mas como foi o helicóptero, tá tudo tranquilo.
Agora, me diz a diferença entre o cara do helicóptero
e os caras do HB20? Não tem diferença nenhuma. Mas
o tratamento foi bem diferente. “Ah, aquele PM ali que atirou
no carro em fuga, errou. Mas o cara do helicóptero, não,
vamos proteger ele porque alguém tem que fazer esse tipo
de merda.”
O Estado quer que alguns profissionais façam
sim esse tipo de serviço sujo. Como fizeram com o Matemático,
como fizeram com o Bem-te-vi na Rocinha, mas sempre que a coisa
começa a chamar muita atenção, eles entregam
alguns pra serem açoitados. E com isso a gente vai empurrando.
E não enfrentamos nenhum problema.

"Qualquer promotor de justiça que chegar no batalhão de
surpresa e disser: "bom dia, eu quero o efetivo do batalhão e
a escala de serviço". Ele vai encontrar, no mínimo, cinco, seis
fantasmas. Em qualquer batalhão do Rio de Janeiro. Isso é
batata, denuncia Rodrigo.
Foto: Bel Barbosa
O seu livro chegou a ser proibido no BEP (Batalhão
Especial Prisional, prisão para policiais militares).
A Polícia Militar não gostou do
livro, tanto que ele foi censurado. Eu me ressinto um pouco de não
ter previsto isso. Eu até imaginava que teria algum tipo
de represália. Depois de escrever o livro, eu pensei em segurar
ele e lançar quando eu saísse da prisão. Mas
as coisas não se resolveram, eu já tava com o livro
pronto, a editora tinha gostado e tava querendo publicar. Aí
eu lancei o livro enquanto ainda tava no presídio da Polícia
Militar. Foi a pior coisa que eu fiz. Escrever um livro falando
mal da Polícia Militar dentro do presídio da Polícia
Militar, que que tu imagina que pode ter acontecido?
Cara, quando o livro foi lançado, minha
esposa levou 30 exemplares pra distribuir lá no BEP, pra
alguns amigos. Eu ia dar pra rapaziada que sabia que eu tinha escrito
o livro e queria ler. Quando ela chegou, não deixaram ela
entrar com o livro. “Ah, mas por que não pode entrar
com o livro?” “Ordem do comando, não pode entrar
com esse livro no presídio.” Minha esposa ficou nervosa
e foi lá no plantão do Ministério Público
no centro do Rio pra contar o que aconteceu, que o livro foi censurado.
Ela contou que o Elite da Tropa, por exemplo, pode entrar, o livro
que o capitão escreveu. Mas o livro que o ex-soldado escreveu
não pode. Aí ela foi e relatou isso lá pro
Ministério Público e depois de alguns dias o MP oficiou
o comando da Polícia Militar solicitando informações
sobre o porquê da censura prévia. O comando deu lá
as explicações dele.
Dois dias depois, de madrugada, aconteceu. Entraram
quatro policiais, pelo que eu pude perceber, na minha cela, todo
mundo com roupa do BOPE, touca ninja, sem identificação.
Entraram na minha cela, me acordaram e eu fui pro saco, tomei choque.
Saco e choque pra caramba. E eles falaram: “Manda lá
a tua esposa retirar a denúncia do Ministério Público,
se não tu vai amanhecer suicidado aqui dentro. Na próxima
vez que a gente voltar, vai ser pra você se suicidar, entendeu
bem?”. Como não entender um recado desse? A minha esposa
não foi mais lá, retirou a denúncia e o assunto
morreu, ficou por isso mesmo. Eu falei com a minha advogada e ela
foi, procurou gente pra denunciar, mas ninguém quis ouvir.
O Comando da Polícia Militar se doeu mesmo
comigo, tomou como uma coisa pessoal que poderia trazer algum tipo
de incômodo pra eles lá em cima. É impressionante
como ainda hoje você incomoda se você falar o que você
pensa, se você falar a verdade.
Teve uma livraria, uma rede de varejo que, por
conta do lançamento do livro, queria fazer uma noite de lançamento.
Eles queriam fazer o lançamento do livro, falaram com a minha
editora e tudo mais. A Justiça autorizou a minha ida até
a livraria pra poder fazer a noite de lançamento. Só
que, no despacho, o juiz determinou que ficava a critério
da Polícia Militar providenciar a escolta pra que eu fosse
até o local de lançamento no dia tal, hora tal, pra
fazer o lançamento do livro. Só que no dia, a escolta
não pôde me levar porque ficou empenhada em outra atividade.
Ou seja, o comandante providenciou a escolta, mas no dia disse que
não tinha escolta pra me levar. A tentativa era essa, de
calar, de evitar que eu falasse.
Em que ponto se perde o policial e se ganha
o monstro?
São vários pontos de quebra. Pra
mim foi a morte do Sampaio. Quando eu vi o Sampaio morto, um recruta
de 19 anos morto com 19 tiros pelas costas. Ali eu falei: “É
guerra e se alguém atentar contra minha vida, eu vou tacar
bala também”. Ali foi que eu percebi a crueza da morte.
Essa lida diária com a violência constante é
que causa a desumanização. Com a corrupção
também, mas ela se torna parte do processo da violência.
Porque pra você conseguir pegar o arrego do traficante, você
tem que subir o morro e dar tiro nele. Se não o traficante
não vai te pagar nada. Traficante não paga pra quem
tá baseado na entrada do morro, porque quem tá baseado
na entrada do morro não atrapalha o movimento da boca. Essa
desumanização vem primeiro com a violência,
depois vem com os benefícios pecuniários que você
pode ter quando os outros querem evitar a violência. Primeiro
eu vou lá, entro no morro, entupo o traficante de bala. Vai
descer um, dois, três mortos. Na semana que vem o traficante
vai pagar pra não descer mais três mortos. A corrupção
é consequência desse estado de violência que
o policial tá sujeito o tempo todo. O policial militar tá
o tempo todo oprimido: na folga dele ele tá oprimido, tem
receio de ser reconhecido, assassinado. Pra mim esse ponto de quebra
foi perceber que eu estava no meio de uma guerra de verdade. E como
o Sampaio, depois vi muitos outros amigos morrendo, fui a muitos
enterros, funerais. Mas aí eu já estava mais recrudescido.
Tem outro caso que eu conto é o de dois policiais assassinados
numa cabine, no Andaraí, o sargento Marco Aurélio
e o cabo Peterson. Eles chegaram pra trabalhar, de manhã
cedo, e lá na cabine Caçapava o vagabundo matou os
dois de .45. O cara fugiu sem levar nada. Cheguei lá pra
ver e tava o sargento Marco Aurélio sem a parte de cima da
cabeça e o Peterson tava todo cheio de tiros no tórax.
Muita gente da minha turma morreu, tá
presa, foi excluída. E a fábrica de monstros tá
aberta, continua lá. Eles vão preenchendo. Sempre
tem gente querendo entrar por causa dessa glamourização
do monstro. Todo concurso da PM é 100 mil inscritos, 80 mil
inscritos. É muita gente, pô. A relação
candidato/vaga é paralela a vários cursos aí
da UERJ. A fábrica tá aberta e muita gente quer entrar
nela, mas a gente vê que tá tudo errado.
AGÊNCIA PÚBLICA
20/07/2015
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