POETA E DIPLOMATA FELIPE FORTUNA AUTOGRAFA
LIVRO SOBRE VIOLÊNCIA
Obra do filho de um dos fundadores do Pasquim
será lançada no restaurante Carpe Diem da Asa Sul
Severino Francisco
Não adianta mais os poetas se refugiarem
em alguma torre de marfim. Elas podem ser bombardeadas, implacavelmente,
por um atentado terrorista. Os movimentos são monitorados
pelo GPS. Estão ao alcance de balas perdidas. Se enviar um
e-mail ou telefonar, a mensagem corre o risco de ser interceptada.
A globalização explode, a cada instante, nas retinas
com imagens de violência. Se é improvável fugir,
os poetas podem deixar ao menos o registro da perplexidade em face
da escalada vertiginosa dos acontecimentos. É sob esse foco
que Felipe Fortuna escreveu O mundo à solta
(Topbooks), coletânea de poemas a ser lançada quinta-feira
(30/10), às 19h, no Restaurante Carpe Diem (104 Sul).
Felipe Fortuna: perplexidade diante da escalada de ameaças à vida
A dimensão política sempre esteve
presente na vida de Felipe, filho do cartunista Fortuna, um dos
fundadores do Pasquim, preso durante o regime militar inaugurado
em 1964. Cresceu em uma casa em que se lia muito jornal e se discutia
sobre tudo. As referências na poesia são Carlos Drummond
de Andrade acompanhando os lances da Segunda Guerra Mundial, Armando
Freitas Filho de Mademoiselle Furtacor, ou Afonso Romano
Sant’Anna, de Que país é esse?. Juntou
as imagens da arte às do ofício de diplomata em andanças
pelo mundo para traduzir as experiências e impressões
em poesia: “Eu acho que esses poemas têm uma preocupação
humanista, mas sem palavra de ordem”, comenta Felipe. “Eles
refletem mais o meu espanto diante de um mundo que nos atropela.”
Felipe não considera a sua poesia engajada,
pois não existem personagens ou governantes políticos
a serem alçados ao poder ou a serem destruídos. Tampouco
há uma agenda de revolução: “Um poeta
que faça um livro político não pode transformar
o seu poema em um panfleto em um programa político. A poesia
tem a uma característica reflexiva. Eu encontrei um certo
ângulo para falar dos drones, do ataque às torres gêmeas
em Nova York, dos terroristas que estão em nosso jardim.
Isso interessa tanto do ponto de vista de uma leitura poética
quanto da perspectiva política”.
A coletânea começa com poemas que
situam Felipe na condição de poeta brasileiro e carioca
ao falar de situações muito cotidianas: a queima de
arquivo, a bala perdida, o fuzil AK-47 nas mãos dos traficantes
dos morros: “Aqui no meio/varado ao meio, em cheio/o sibilo
parece altíssimo/e as vozes concluem:/perdeu, perdeu”.
Mas avança em direção aos personagens e às
máquinas de vigiar ou de destruir de um mundo globalizado:
“O drone chegou. Seu voo de silêncio (a/menos que atravesse/o
céu escarlate) inverte o mundo:/não é a bomba
cega/que pulveriza o prédio e a fuga/— é a máquina
que acerta em cheio/e vai e volta a toda/com sua missão de
rapina./Avião crucificado. E voa sem sacrifício/sem
kamikaze/sem aguardar combustível/e sem mãos grudadas/ao
batimento cardíaco”. Em texto para a orelha do livro,
o crítico Silviano Santiago situa Felipe Fortuna entre “os
melhores poetas da atual geração de indignados”.
SERVIÇO
O mundo à solta
De Felipe Fortuna. 108 páginas/Editora Topbooks.
Lançamento, 30/10, a partir das 19h, no
Carpe Diem (104 Sul)
Leia entrevista com o autor
No Brasil, existe uma tradição de poesia engajada
e social, mas ele foi interrompido. Como foi o processo de criação
e reflexão sobre uma poesia nessa linhagem?
Não sei posso chamar de poesia engajada , mas com certeza
é poesia política. Em primeiro lugar, isso ocorreu
porque cresci em uma família na qual a política estava
presente o tempo todo, a gente lia jornal e discutia muito. O meu
pai (o cartunista Fortuna) trabalhou no Pasquim e foi preso, durante
o regime militar de 1964. Ele tinha uma visão muito política
do trabalho dele. Mas a minha poesia reflete também uma preocupação
com a arte. Há uma série de referências: o painel
Guernica, de Picasso, sobre a guerra civil espanhola. Existe Carlos
Drummond de Andrade acompanhando a Segunda Guerra Mundial pelo rádio.
E também é um reflexo de acompanhar o que acontece
no mundo pelo trabalho de diplomata. Existem situações
novas: os drones, os desastres climáticos, a guerra química,
a espionagem internacional, o tráfico humano, a invasão
da privacidade e a vigilância eletrônica sobre a nossa
vida. Fui colecionando esses acontecimentos com uma preocupação
humanista de me expressar pela poesia. Mas não é palavra
de ordem, não é poesia engajada.
Qual a diferença que estabelece entre
essa linha de poesia política e a tradição
engajada?
A poesia engajada tem personagens políticos. Se observar
O mundo à solta, não existe um governante ou
político que precise ser derrubado ou alçado ao poder.
Não há crítica a governos. Estou falando sobre
uma situação do planeta, os desastres naturais, o
racismo, o terrorismo. Não tem cara ou causa que seja absorvida
por um político. Você pode estar à direita ou
a direita do espectro político, mas a questão do meio
ambiente interessa a todos.
Quais são para você as principais
referências neste processo de reflexão sobre a poesia
e a política?
Seguramente, Fernando Pessoa, que canta um Portugal imaginado. Carlos
Drummond de Andrade, de A rosa do povo, que faz uma reflexão
poética sobre a política. Mais recentemente, poderia
citar Armando Freitas Filho, de Mademoiselle Furtacor e de
alguns poemas sobre a tortura; Afonso Romano Sant’Anna, de
Que país é esse?. São poetas vivos.
E há, também, outros poetas internacionais, sobretudo
na Espanha e na França. Os temas políticos não
deixaram de existir porque os poetas tomaram os rumos da subjetividade
ou da metalinguagem. Não é uma questão temática;
é uma questão de forma para o poeta.
Qual é o desafio da forma para um poeta
político?
Um poeta que faça um livro político não transforma
o seu poema em um panfleto, não transforma em programa político.
A poesia tem a característica reflexiva. Precisei encontrar
um ângulo para falar sobre certos assuntos: os drones, as
torres de Nova York ou o terrorismo. Isso torna interessante tanto
a leitura poética quanto a política. Há, nos
poemas, um ambiente de impessoalidade, de ameaças ao humano,
que se torna muito frágil diante de forças descontroladas…
Quando comecei a estudar relações internacionais e
virei um profissional da diplomacia, um ponto que me deixou perplexo
é a violência no planeta. Estamos falando de bomba
atômica em cima das cidades, de guerra química, de
desastres naturais, mas também dos provocados pelos seres
humanos Não importa que seja criança, mulher, idoso,
pois está submetido a um mundo de violência no plano
internacional que precisa ser controlado.
Em face desta escalada da violência,
o poeta só conta com as duas mãos e o sentimento do
mundo, de que fala Carlos Drummond?
Esse confronto da fragilidade do poeta com o mundo estimula a produção
de narrativas poéticas. No livro, há um poema em que
falo de uma pessoa morta porque sabia demais: “Àquele
que viu tudo/e por ter visto/tornou-se aquivo/não se esquivou/cravaram
quinze tiros”.
No caso do poeta russo Maiakóvski, é possível
falar também de uma poesia política de qualidade?
Com certeza, no caso de Maiakóvski, seguramente, estamos
falando de um poeta que tinha uma agenda: a revolução.
Agora, o que está em jogo é um mundo que nos atropela.
A minha poesia é apenas um testemunho sobre o nosso tempo.
Você sente falta de ler esse tipo de
poesia?
Seguramente, sinto falta. Você encontra isso em Ferreira Gullar,
um poeta de grande sensibilidade que, no Poema Sujo, evoca a pobreza
que viveu ou testemunhou. João Cabral de Melo Neto é
um poeta altamente político em Morte e vida Severina
ou em Auto do Frade. Já citei o Armando Freitas Filho
e o Afonso Romano Sant’Anna. Mas, talvez como efeito da anistia
política, depois de uma fase pesada, houve uma despreocupação
com esse tema. O que foi muito bom porque liberou para explorar
a expressão da subjetividade e falar de outros temas. A poesia
da Adélia Prado, por exemplo, fala sobre a vida doméstica
provinciana e uma sexualidade conflituosa. Mas a preocupação
política não termina com a assinatura da anistia,
pois estamos enfrentando novos problemas importantíssimos.
A sua poesia é contaminada pelo ambiente
explosivo da globalização?
Sem dúvida, isso passa pela vida dos poetas de hoje. Nos
anos 1970 ou 1980, poucas pessoas estavam preocupadas com a Ásia
ou a Síria. Alguns pensavam no Vietnã porque tinham
uma cabeça bipolar, marcada pela oposição entre
Estados Unidos e Rússia, mas não falavam do Afeganistão.
O livro tem esta projeção globalizada. O ebola entra
nos Estados Unidos e pode chegar ao Brasil. Isso tem a ver com saúde
e com política. Mas, repare que os primeiros poemas do livro
falam de bala perdida, de massacre na Candelária, de fuzil
AK-47, de queima de arquivo, a partir da vivência e da paisagem
de poeta brasileiro e carioca. Em seguida, os poemas começam
a se vincular ao mundo todo.
Como é que as ilustrações
da Marisa entraram no projeto do livro?
Eu sempre lia as ilustrações que ela fazia para a
coluna Diário da Corte, de Paulo Francis. Ela tem a característica
de produzir imagens coladas aos fatos. Quando estava escrevendo
o livro, imaginei que ela poderia fazer algo semelhante, pois os
meus poemas estavam muito ligados à notícia. Ela abraçou
o projeto e as imagens que produziu são impecáveis,
sem fornecer uma interpretação literal, elas dão
um ambiente para os poemas.
O mundo à solta é uma
reflexão sobre o espetáculo global da violência
que bate nos olhos a todo instante?
Quase toda notícia de hoje é violenta: decapitação,
fuzilamento, explosão de uma mesquita, bombardeio de igrejas.
Os próprios âncoras dos telejornais advertem os telespectadores:
“Retirem as crianças da sala, pois mostraremos imagens
fortes”. Mas o acesso à violência é instantâneo
pela internet. Antes, quando havia a foto de um fuzilamento, isso
ficava décadas em nosso imaginário como símbolo
da violência. A imagem da menina correndo nua, atingida por
uma descarga de bomba Napalm, permaneceu durante muito tempo como
símbolo de uma violência a ser evitada. Agora, a imagem
envelhece muito rapidamente. Não temos mais essa memória.
O livro reflete essa perplexidade.
Poemas do livro
O drone (trecho)
O drone chegou. Seu voo de silêncio (a
menos que atravesse
o céu escarlate) inverte o mundo:
não é bomba cega
que pulveriza o prédio e a fuga
— é a máquina que acerta em cheio
e vai e volta a toda
com sua missão de rapina.
Avião crucificado. E voa sem sacrifício
sem kamikaze
sem aguardar combustível
e sem mãos grudadas
aos batimentos cardíacos.
Os meus respeitos (trecho)
Àquele que viu tudo
e por ter visto
tornou-se arquivo
não se esquivou
cravaram quinze tiros.
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Àquele bebê
pijama azul, menino
deitado no berço
chocalho ao lado
sem choro, sem vacina
ainda assim
bala perdida. |
CORREIO BRAZILIENSE
Brasília
30/10/2014
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