O POETA E A FOME
Affonso Romano de Sant’Anna
Outro dia estava falando para dezenas de operários
de uma grande empresa sobre literatura & vida, e explicando
que certas coisas quando são narradas através de mitos
e da poesia ganham uma força especial. Ia lhes dando alguns
exemplos, e eles balançavam a cabeça concordando.
É que os textos míticos e literários têm
uma força alusiva que ultrapassa a racionalidade de outros
textos, e até mesmo das estatísticas.
Nesse mesmo dia chego em casa e encontro o novo
livro de Maria José de Queiroz – “Em nome da
pobreza” (Topbooks). Que saudades de suas
vibrantes aulas de literatura hispano-americana na antiga Faculdade
de Filosofia! Agora a reencontro nesta obra onde sua erudição
e formação literária estão a serviço
de um tema social clamoroso – a pobreza. Nisto ela vem se
associar a uma linhagem de escritores que têm manifestado
uma invejável lucidez sobre angustiantes temas atuais. Aí
a literatura surge para esclarecer e ilustrar intrincadas questões
e, de novo, é mais eficaz que outros discursos.
Maria José já havia feito algo
parecido em livros anteriores, estudando a problemática do
exílio, a questão do êxtase das drogas e a relação
entre a literatura e “o gozo impuro da comida”. Uma
maneira de mostrar como a prosa e a poesia espelham e elaboram problemas
seculares.
Certos poemas valem mais que mil palavras de
economistas, sociólogos, filósofos e discursos de
políticos. De repente, neste livro onde se analisa a pobreza,
deparo-me com o texto de um poeta africano desconhecido, lá
de Malawi. Leio. Levo um baque. Está tudo ali. O texto fala
mais que qualquer estatística, que qualquer discurso. O poeta
cristalizou em poucas palavras toda a nossa perplexidade, impotência
e remorso diante da pobreza. Vejam:
DE UM POETA ANÔNIMO DO MALAWI, ÁFRICA
Eu tinha fome
e vocês fundaram um clube humanitário
para discutir a minha fome.
Agradeço-lhes.
Eu
estava na prisão
e vocês
foram à igreja
rezar
pela minha libertação.
Agradeço-lhes.
Eu estava nu
e vocês examinaram seriamente
as conseqüências de minha nudez.
Agradeço-lhes.
Eu estava
doente
e vocês
se ajoelharam
e agradeceram
a Deus o dom da saúde.
Agradeço-lhes.
Eu não tinha casa
e vocês pregaram sobre o amor de Deus.
Vocês pareciam tão piedosos,
tão perto de Deus!
Mas
eu continuo com fome
continuo
só, nu, doente,
prisioneiro.
E tenho
frio,
sem
casa.
O ESTADO DE MINAS
12/11/2006
[Nota — Dois dos livros da autora a que
se refere o poeta e colunista foram editados também pela
Topbooks: Os males da ausência ou A literatura do
exílio e A literatura e o gozo impuro da
comida (esgotado)].
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