| TEXTO DE FHC SOBRE AS RAÍZES DEMOCRÁTICAS DE SÉRGIO BUARQUE Fernando Henrique Cardoso Bem-vinda a  edição crítica de "Raízes do Brasil", o pequeno grande livro de  Sérgio Buarque, lançada pela Companhia das Letras sob o olhar atento de Lilia  Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro. Fazia falta uma revisão editorial  cuidadosa do livro que mostrasse as eventuais discrepâncias entre a edição  "princeps", de 1936, a edição de 1948, corrigida e expandida pelo  próprio autor, e as outras edições. A nova publicação é impecável. Desde o lançamento, esse livro provoca  debates. Anos depois da edição original, Antonio Candido, em texto famoso,  considerou que o livro "já nasceu clássico". Mais recentemente, em  cuidadoso e interessante estudo de Luiz Feldman, o epíteto é corrigido para  dizer, como está sintetizado no título do ensaio, que o livro tornou-se um  "Clássico por Amadurecimento" (editora Topbooks). As modificações da versão original  feitas pelo autor expurgaram palavras e mesmo apreciações mais amplas, que poderiam  tê-lo filiado mais próximo das correntes autoritárias vigentes nos anos 1930.  Sem, nem de longe, supor que o autor estivesse mascarando pensamentos, Feldman  mostra como a imposição autoritária de regras poderia, eventualmente, ter sido  uma alternativa para se contrapor às tendências "cordiais", quer  dizer, às preferências afetivas que sufocam a impessoalidade da lei, condição  para a democracia. Na pequena síntese que fiz das ideias  contidas em "Raízes do Brasil" para reafirmá-lo como um  "clássico" de nossa literatura, em "Pensadores que Inventaram o  Brasil", sequer entro nesse tema. Interessava ressaltar a marca que ficou  em mim, a de um Sérgio Buarque que se distinguiu de tantos autores que  justificaram o autoritarismo, na prática como nos livros. Basta referir a Oliveira Viana ou a  Almir de Andrade, este último tão bem analisado por Feldman. Na verdade, a  "revolução" suposta pela urbanização e pela industrialização, na qual  Sérgio Buarque apostou, amalgamava os "ímpetos culturais" e as  condições de vida. Talvez a passagem mais característica  desse processo pudesse ser sintetizada pela expressão do próprio autor: "A  realização completa de uma sociedade também depende de sua forma". O  "homem cordial", embora típico idealmente, à la Weber, se contrapusesse,  com seu iberismo, ao "americanismo" ("leia-se, ao espírito do  capitalismo"), não o impediria; talvez o distinguisse de outras formas de  capitalismo, atenuando-o, no bom e no mau sentido. Transcorridas tantas décadas, vivendo  o Brasil de hoje com maior presença do "americanismo", acaso o  personalismo caudilhesco e o nepotismo despareceram de nossa cultura? Ao mesmo  tempo, não terá sido a força transformadora da urbanização e do crescimento  econômico que, se não levou nossa política ao liberalismo nem à plena aceitação  da "democracia representativa" (ambas criticadas pela esquerda nos  anos 1930 como agora), tampouco afirmou o autoritarismo como forma preferencial  de governo? E não é em nome da mesma "democracia substantiva", movida  a emoção, que até hoje alguns continuam a justificar os desvios do  "lulismo"? Certamente a defesa das oligarquias  autocráticas nunca foi afim com o pensamento nem com o sentimento de Sérgio  Buarque e tampouco a aceitação acrítica da prevalência da substância sobre a  forma, como se uma pudesse ser apartada da outra. O Sérgio que  ficou perene, na vida intelectual como na memória dos que foram seus amigos e  contemporâneos, é muito simplesmente o Sérgio de 1948, o mesmo que gostava da  vida cheia de "cordialidade" (dos aniversários acolhedores, mormente  quando entrava na sala alguma moça bonita acompanhando seus filhos) e que em  gesto de solidariedade a mim e a tantos outros colegas seus expulsos da  universidade pelo regime de 64 (Florestan Fernandes e Mario Schenberg, para dar  dois nomes) pediu aposentadoria da USP. Continuou acreditando não no  "americanismo" sem cor, ou trajando apenas as formas do liberalismo,  mas naquele que deu aos ideais tradicionais da nossa cultura a possibilidade de  abrigar valores socialmente democráticos.             FERNANDO  HENRIQUE CARDOSO, 85, sociólogo, é ex-presidente da República, presidente de honra  do PSDB e autor de "Diários da Presidência" (Companhia das Letras).             Publicado na Folha de S. Paulo em 7 de agosto de 2016 Leia também: A importância de se falar da mutação ideológica de "Raízes do Brasil" Comentário de Especialista |