ELE COMBINOU COM OS RUSSOS
Memórias do homem que norteou a Guerra
Fria
Marcos Azambuja
Premiadas memórias de George F. Kennan
(1904-2005) ganham
tradução brasileira. Obra em dois volumes cobre de
1925 a 1963
e é analisada por embaixador, que frisa sobretudo como a
sensibilidade e as orientações do cientista político
e diplomata em
Moscou evitaram que a Guerra Fria se tornasse um conflito bélico.
O "longo telegrama" foi enviado pela
Embaixada dos Estados Unidos em Moscou para o Departamento de Estado,
em partes, no mês de fevereiro de 1946. Era o "blueprint"
do que seria, no essencial, a política de contenção
adotada por sucessivas administrações norte-americanas
como resposta à política expansionista da União
Soviética.
Merecia o nome: era, sem qualquer dúvida,
um telegrama e foi, até o momento de sua expedição,
o mais extenso texto da história das comunicações
telegráficas enviadas pelos canais da diplomacia americana.
Seu autor era George F. Kennan; então com 40 anos, ele era
a segunda pessoa da hierarquia do posto e responsável pelo
setor político da representação diplomática
de seu país em Moscou.
Poucos textos de análise prospectiva de
aspectos do comportamento internacional se revelaram tão
prescientes quanto a avaliação original de Kennan,
que tem suas "Memórias 1925-1963" [trad. Vera
Giambastiani e Antonio Sepulveda, Topbooks; R$ 119; vol. 1, 491
págs. e vol. 2, 297 págs.; não vendidos separadamente]
publicadas agora no Brasil.
Kennan partia de uma avaliação
lúcida e informada do que a Rússia era e ambicionava
conseguir e, por ser eminentemente realista, escapava das simplificações
ou demonizações com que costumavam ser vistos naqueles
idos os projetos de Moscou. Embora reconhecesse as especificidades
próprias do regime soviético, identificava no comportamento
russo elementos que transcendiam as circunstâncias do momento
e correspondiam a uma certa maneira russa de pensar e interpretar
o mundo.
As linhas de conduta que preconizava e que recomendavam
uma política de "containment" da União Soviética
serviram como guia de conduta para Washington por várias
décadas, funcionando como modelo ao longo dos mais de 40
anos que durou a chamada Guerra Fria, extraordinária prova
de longevidade em um universo em que os diagnósticos e as
terapias que deles derivam costumam ter vida muito mais efêmera.
Embora a Guerra Fria tenha a sua data inicial
associada com o bloqueio de Berlim em 1949, é evidente que,
em 1946, a reflexão dos melhores analistas já havia
antevisto e identificado o longo ciclo de enfrentamentos e desconfiança
que, com oscilações de intensidade, persistiria entre
americanos e russos até a queda do Muro de Berlim em 1989.
Se não tivesse sido escrito o longo telegrama,
ou se ele não tivesse sido acolhido como matriz da política
que foi perseguida por Washington por um tão longo período,
talvez a palavra "fria" não servisse para descrever
a natureza do amplo enfrentamento político, militar e ideológico
que existiu entre as duas superpotências daquele tempo e tivéssemos
deslizado tragicamente em direção a um enfrentamento
militar direto entre elas, que poderia se ter transformado na Terceira
Guerra Mundial, com sua catastrófica dimensão nuclear.
VITORIOSOS
George Kennan pertence àquela geração de jovens
americanos que, vitoriosos na Segunda Guerra Mundial, tiveram o
desafio de organizar o mundo em linhas e espaços que reconhecemos
ainda hoje. No campo das relações internacionais,
os atores decisivos não foram muitos: George Marshall, Dean
Acheson, Chester Bowles, Paul Nitze, John McCloy e Robert Lovett,
para reunir os seis contemporâneos que são frequentemente
identificados como os principais arquitetos da filosofia de ação
norte-americana na Guerra Fria.
Mais tarde, seria preciso somar John Foster Dulles
e Henry Kissinger a essa lista como as pessoas que, de perspectivas
diversas e em momentos diferentes e com importantes divergências
entre si, desenharam as linhas gerais do mundo em que vivemos.
Kennan, além de ter sido um dos maiores
estrategistas diplomáticos de seu tempo, é também
um escritor de estilo fácil e fluido que reflete os pontos
de vista de uma elite política e cultural dos Estados Unidos
formada nas suas grandes universidades. Essa elite via seu país
como o titular de um destino manifesto e não mostrava um
interesse maior ou uma sensibilidade especial senão para
as grandes potências tradicionais, negligenciando as que não
participassem da equação central da disputa pela hegemonia
mundial.
Se o enfrentamento soviético-americano
é o confronto central da história mundial na segunda
metade do século 20, George Kennan é, ao mesmo tempo,
ator privilegiado no desenho dos termos e condições
desse enfrentamento e, também, cronista idealmente colocado
para contar o que então acontecia e avaliar as consequências
daqueles atos sobre o futuro das relações internacionais.
DUALIDADE
É significativo que o interesse
pelas memórias de Kennan não tenha desaparecido depois
de 70 anos passados dos acontecimentos descritos e que, pelo contrário,
como os recentes acontecimentos na Crimeia evidenciam, George Kennan
continue a ser um mestre em identificar aquela dualidade de comportamento
– temeroso e agressivo – que é tão característica
do repertório tradicional russo.
Algumas das questões exploradas por Kennan
voltaram a ter, em um novo contexto, relevância e atualidade.
Uma Rússia revigorada voltou a adotar posições
que são as que o país costuma quase automaticamente
assumir quando se sente cercado e ameaçado.
Kennan foi dos primeiros a identificar aquela
característica dualidade de um país que se percebe
como um ator internacional poderoso por suas imensas extensões,
não menores recursos naturais, cultura e população
e, ao mesmo tempo, aberto e vulnerável a vários inimigos
que se aproveitam das vastas planícies de seu território
como caminhos abertos para a invasão e a conquista.
Os fundos traumas da história próxima
e remota continuavam a atuar (como acontece até hoje) sobre
o espírito e o imaginário russos. Os quase 30 milhões
de mortos e feridos na resistência à invasão
hitleriana haviam caído um punhado de anos antes. A invasão
napoleônica estava distante de apenas pouco mais de um século.
O que torna a percepção de Kennan
aguda e relevante é que sua profunda compreensão do
psiquismo russo não o faz cego para as ameaças que
o regime comunista implantado em Moscou representava para o resto
da Europa e para a ordem internacional.
As memórias de Kennan, desde sua entrada
no serviço diplomático, em 1925, até 1963,
entremeadas de comentários e digressões sobre fatos
e pessoas, representam um exercício literário valioso
em si mesmo – reconhecido, aliás, com o Pulitzer e
o National Book Award em 1968. Elas têm – isso é
evidente – valor maior como testemunho de um período
decisivo da construção da ainda parcialmente vigente
ordem internacional. Mas são também um passeio na
companhia de um excelente escritor cujo olhar se estende, informado,
arguto e curioso, sobre período em que lhe coube ajudar na
construção de uma nova época.
Destaco isso ainda uma vez: os dois volumes podem
ser lidos pelo seu valor literário e intelectual. O fato
de que estejamos diante de um testemunho especialmente valioso sobre
um agudo momento da história representa uma importante bonificação
adicional.
Kennan é um conservador da velha escola
e pouco tem a ver com a atual direita do Partido Republicano. A
sua é uma visão de moderação e firmeza,
e importa destacar que foi contra a Guerra do Vietnã e a
invasão do Iraque. Já então o imenso poder
do complexo industrial-militar dos Estados Unidos determinava o
rumo dos acontecimentos e, mais uma vez, vozes mais radicais e belicistas
comandavam a reflexão em Washington.
O internacionalismo de Kennan e sua avaliação
rigorosa de onde residiam os interesses vitais dos Estados Unidos
foram superados pela estridência dos falcões de safras
mais recentes e voos mais curtos, que defendem causas de pequena
legitimidade e escasso interesse estratégico para os EUA.
Kennan afirmou, num certo momento, que se sentia
mais como um convidado de seu tempo do que como parte de sua copa
e cozinha. Tinha um distanciamento que era uma mistura da atitude
do intelectual, reforçada por um temperamento propenso ao
recolhimento, e o que talvez se pudesse rotular como uma forma de
elitismo em direção do qual o impeliam suas qualidades
e suas circunstâncias.
Talvez pudesse concluir usando suas próprias
palavras numa síntese que mostra sua abertura de espírito
e sua capacidade de ver e entender o outro – no caso da citação
que escolhi, a Rússia e os russos: "O melhor a fazer,
se queremos que os russos nos deixem ser americanos, seria deixar
os russos serem russos".
FOLHA DE S.PAULO
09/11/2014
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