LIVRO DE FELIPE FORTUNA CONSEGUE CHEGAR 
              À PEDRA FILOSOFAL 
            Gerald Thomas 
            
            "A Mesma Coisa", de Felipe Fortuna, 
              apesar da insistência do autor, está longe, muito longe 
              de ser uma qualquer "mesma coisa". Já na primeira 
              página eu me surpreendo com algo assim: 
               
              Eu me repito 
              mesmo 
              quando não copio 
               
              Eu poderia escrever mil páginas (pra ser mais preciso), dependendo 
              de qual prisma ou antiverso eu quisesse usar, seja via "Ulysses" 
              de Joyce ou de "Galáxias" de Haroldo de Campos, 
              ou mesmo via Ezra Pound e seus "Os Cantos", a respeito 
              desse pequeno trecho, somente desse pequeno trecho acima. Ele vem 
              a ser a longitude e a latitude, enfim, a bússola que nos 
              traz aos tempos de hoje / agora / now/ o presente imediato, com 
              nossas crises de identidade entre ocidentes e orientes, Ásia 
              desloucada e deslocando o eixo de tudo e recomeçando tudo, 
              especialmente a China com a questão do lixo, da reciclagem 
              e da ascensão à classe média e ásias, 
              náuseas, com os polos derretendo e uma globalização 
              fazendo dos CEOs os reis Lears que vemos na TV. Não é 
              fácil. E não há antiácido que chegue. 
            Esse livro de Felipe Fortuna traz o melhor dos 
              dois mundos: a filosofia da duplicação e do eterno 
              retorno, do múltiplo retorno (wagneriano, como Navios Fantasmas 
              ou como o Liebestod amor depois da morte, e vice-versa, ou o amor 
              através da morte, ou a impossibilidade de uma vida por inteiro 
              como um Nietzsche depois de sua crise ao ver o cavalo espancado... 
              Mas também nos faz sentir que, como poeta, sua função 
              é lírica e idílica e suas palavras fluem como 
              uma linda sinfonia e, antes mesmo de mudarmos de página, 
              a lágrima escorre, e sua poesia é pura emoção. 
               
              É raro, muito raro nos dias de hoje ou em qualquer dia um 
              livro de poemas nos "pegar pelo pé e pelas mãos" 
              e arrancar a alma suicida que levamos no peito. Suicida sim. Sim, 
              às vezes queremos morrer de tanta beleza ou porque não 
              vemos mesmo mais sentido nessa massificação de tudo, 
              nessa produção em massa de tanto, "onde tudo 
              é tudo e nada é nada". 
               
              E?... E o quê? Não sei... Apesar das constatações 
              existenciais, Fortuna dá um coice de cavalo no nosso estômago 
              com esse pequeno grande livro. E que coice! Parece que Moisés 
              está no alto do Monte Sinai conversando diretamente com o 
              Criador ("eu sou igual a um anagrama"). Será que 
              Moisés, como um anagrama, receberia os Dez Mandamentos sendo 
              um anagrama? Sim, provavelmente sim, já que um anagrama é 
              um eufemismo, uma sofisticação, uma redução 
              da essência dessa galáxia de palavras que nos.... o 
              quê? Que nos.... Babel. Sim, que nos babamos e Babelamos até 
              o desentendimento desde sempre. 
            A MESMA COISA nos "Babel" um pouco 
              menos, já que ele, o Felipe, nos aproxima um pouco mais de 
              quem somos (ou deveríamos ser). Faz sentido? 
             
            CENA DE ORIGEM 
            Sim, aquela mesmo. Aquela escrita faz um pouco 
              mais de 5 mil anos, em aramaico (já que o hebraico não 
              foi arquivado). Fortuna (o nome diz tudo, filho de um dos maiores 
              cartunistas brasileiros ever, especialmente do Pasquim), sabe que 
              essa cena não tem UMA só origem, portanto é 
              a cena da diáspora. Explico mais tarde aqui nesse texto mesmo. 
               
              Li esse livro no avião vindo, indo, voltando e em terra. 
              E li de novo e, de fato, acho que ele tem vários autores 
              – no melhor estilo do "Teatro da Crueldade" ou do 
              seu Duplo, de Artaud, que Jorge Luis Borges... (bem, vamos deixar 
              Borges de lado. Mas como? Sim, de lado!) 
            O Criador aqui é o autor e não 
              Deus, se bem que um é o outro e o outro é um. Pronto! 
              Voltamos a Borges naquele conto, "O Outro", mas pouco 
              importa. Aqui o Criador quer desesperadamente provar que somos um 
              a cara do outro, um mero anagrama do outro, uma diferença 
              mínima de cromossomos, de "como somos", o R da 
              diferença. 
               
              É o R de rato. O camundongo do tempo de Poe e o rato, virtude 
              dos mitos da diferença, da diáspora! 
               
              "Não me pergunte por que somos iguais. Minha alma gêmea 
              chegou 
              para me ajudar: 
              a mão que estende 
              é uma só, igual a todas" 
               
              Felipe Fortuna consegue o que os grandes poetas conseguem com a 
              poesia: chegar à pedra filosofal ou fundamental. Gilbert 
              Chesterton foi um deles. Samuel Coleridge foi outro. Sim, temos 
              inúmeros. 
               
              "A porta se fecha quando entramos" é um território 
              tenebroso que nos deixa gélidos junto a Kafka e Fernando 
              Pessoa. Mas estamos junto ao Criador então – nesse 
              sentido – diferente e oposto a Kafka e Pessoa, ele não 
              nos joga aos leões e divide suas indecisões, suas 
              amarguras e anagramas conosco, as suas sílabas reverberam 
              conosco e não simplesmente ficam lá, como sons jogados 
              como efeitos ou defeitos da poesia concreta ou da música 
              concreta de Cage ou de Stockhausen. 
               
              Felipe Fortuna é camaleônico, mas não tão 
              completamente como finge ser o poeta porque o poeta pode ser um 
              fingidor e fingir tão completamente até "apodrecer". 
              "O manequim imóvel e surpreso (...) apodrece", 
              mas na verdade não apodrece a poesia que aqui lemos e aqui 
              nos inspira a mais um dia, mais um mês, mais um ano de tantas 
              imitações, de tantos "trompe-yeux" que já 
              não sabemos mais o que é porta e o que importa... 
              mas... se fingimos tão completamente, que diferença 
              faz? Num mundo cada vez mais confuso e asiático e de dar 
              náuseas, numa falsa cultura a essa falta de cultura onde 
              nenhum antiácido resolve, uma coisa é garantida: 
            A MESMA COISA não é a mesma coisa, 
              mesmo porque virando a página temos mais dois poemas belíssimos: 
              O SUICIDA e CONTRA A POESIA. E esses outros dois capítulos-poemas 
              são justamente essa diáspora à qual me referia 
              antes, que compõe a cena de origem e transforma o livro, 
              como um todo, num livro nômade. Começa com aquela "masterpiece" 
              e termina com um "contramasterpiece", assim como o Barthes 
              ou a Susan Sontag o definiria. 
            Ah palavra que me falta (Arnold Schoenberg). 
               
              Dizer que é "A Mesma Coisa" impactante é 
              redundante. 
               
              Dizer que é ducacete é desvalorizar o livro. Dizer 
              que é genial, simplesmente genial e emocionante é 
              chegar perto da verdade, bem pertinho da verdade. 
            FOLHA DE S.PAULO 
              29/06/2013 
               
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