O POETA QUE PENSOU O BRASIL
Luiz Paulo Horta
Augusto Frederico Schmidt tinha muitos rostos.
O do poeta que, com o “Canto da noite” ou a “Estrela solitária”,
trouxe ressonâncias bíblicas para a poesia brasileira; o do empresário
que se envolveu em projetos pioneiros como o do supermercado Disco;
o do assessor presidencial, talvez a cabeça mais brilhante do governo
Kubitschek, formulador de projetos como a Operação Pan-Americana.
Ao lado deles, vivia o polemista apaixonado pelas
coisas brasileiras, inquieto com a lentidão em que o país parecia
mover-se. É esse Schmidt que aparece nas crônicas da “Antologia
política” agora lançada pela Topbooks — artigos publicados entre
1947 e 1965 em jornais como o “Correio da Manhã”, O GLOBO, “A Tarde”,
da Bahia.
É
o Schmidt ansioso, quase febril, para sacudir o país do que considerava
um estado meio amorfo, quase cataléptico. O que espanta é que nesses
artigos fogosos, escritos em épocas tão diferentes, apareça tanta
coisa que continuamos discutindo hoje.
Em 1947, por exemplo, ele mal passara dos 40,
mas já estava desesperado com o bem-comportado governo Dutra. “Um
país não pode viver como vamos vivendo” — escrevia, no “Correio
da Manhã”. “Lutar contra o comunismo não é, em si mesmo, uma finalidade.
Há, dominando e destruindo o governo do probo e patriótico presidente
Dutra, um tal primado da incompetência, do descaso, da falta de
sentido construtivo, uma ausência tão grande de instinto do que
ao Brasil convém, que não é possível evitar, se as coisas continuarem
como estão, um colapso terrível”.
Em 49, Dutra vai encontrar-se com Truman (foi
quando surgiu a famosa piada, “How do you do, Dutra? How tru you
tru, Truman?”). Há um clima de esperança no ar; Schmidt adverte:
“Refloresceu a mole confiança de que vão abrir-se as arcas da rica
América para nos liberar de nossas aflições e misérias. Nada mais
falaz, nada mais melancólico para nós brasileiros do que essa mania
da obtenção de recursos fora do trabalho normal... Dinheiro de graça,
porque Truman achou Dutra simpático, bondoso, modesto, nunca, jamais”.
Críticas ao reino da burocracia de Vargas
Getúlio Vargas volta ao poder pelo voto, em 1951.
Mas continuam os problemas. A atividade industrial e até comercial
é precária. O recurso é o emprego público. “O país transformou-se
no reino burocrático por excelência. De norte a sul, os orçamentos
estaduais e municipais são comidos pela verba de pessoal. Como disse
o deputado Horácio Lafer, o espaço ocupado pelo funcionalismo nas
despesas nacionais é inacreditável. Muitas repartições vivem repletas,
e algumas inteiramente vazias. O Congresso federal e as câmaras
dos deputados estaduais regurgitam de funcionários, de bons e de
maus, mas todos descontentes, porque não há vencimento que satisfaça
e acompanhe a alta diária da vida”. Ah, o velho Brasil...
Naquele mesmo ano, ele já refletia sobre a peculiar
posição americana no mundo (atual, não é?): “Das viagens que fiz
à Europa nestes últimos três anos trago uma impressão estranha.
As várias aplicações do Plano Marshall, todo o esforço e auxílio
norte-americano prestado aos países arruinados e devastados pela
guerra não conseguiram, inexplicavelmente, estabelecer nesses povos
uma opinião pró-americana... Creio que nenhum povo, como o norte-americano,
foi tão largo, tão abundante, tão pródigo — e tão mal recompensado
na sua boa vontade”. Seria, já, a tradicional inabilidade americana
na política externa (agora transformada em tragédia pelo governo
Bush). E, claro, a invasão que estava por toda parte: “Na grande
ponte de entrada de Veneza, a Coca-Cola está presente com anúncios
monumentais. Na mais humilde das aldeias portuguesas, nas antigas
cidades da França, as indústrias invasoras conseguiram penetrar
e fixar-se. O que os romanos sublinhavam com as suas águias imperiais,
os norte-americanos inocentemente marcam com os reclamos de suas
bebidas, de suas balas elásticas, de seus detergentes”.
Há um momento em que ele se anima com o governo
Vargas: começam a acontecer coisas, aparecem refinarias. Ele se
lança na “sua” batalha, o que ele chama de “luta contra o colonialismo”.
Em que consiste? “É, simplesmente, a batalha pelo enriquecimento
do país, da qual tudo depende: nossa sobrevivência, nossa continuidade
nacional e, principalmente, uma vida digna da condição humana”.
O que impede essa conquista? Inimigos externos, certamente, que
nos querem sempre como exportadores de bananas; mas, também, os
internos: os intelectuais que não conseguem pensar com humildade
e realismo, os ignorantes, “a legião dos incompetentes, que esbravejam
no escuro, os representantes da burocracia avassaladora”. Ele fala
como falaria um Mauá transplantado para o século XX: inimigos “são
todos os que pretendem, por estupidez ou por ressentimento, embargar
as salidas , os impulsos da iniciativa privada, que é em verdade
a única de ação eficiente e enérgica”. Era a noção clara de que
o Estado, sendo certamente indispensável, não cria riqueza — e pode
sufocar os que a criam.
Visão exportadora e desenvolvimentista
Em 1952, ele continua perfeitamente atual: “Os
aumentos desordenados de salários, nos termos em que são reclamados,
terminarão por levar o país a uma crise imprevisível; mas não se
pode evitar esse aumento de vencimentos sem providenciar energicamente
contra o aumento do custo de vida, contra a ascensão vertiginosa
dos preços de utilidades, transportes, habitação...”. Tudo tão familiar
que chega a dar cócegas.
Em 1953, escrevendo ainda no “Correio da Manhã”,
Schmidt está angustiado: “Tenho falado longamente, e em vão. Eu
não teria forças para seguir opinando se não me socorresse pelo
menos a noção de que posso transmitir, a uma pessoa que seja, um
pouco da angústia que me possui quanto ao futuro do meu país”.
Ainda em 53, outra visão profética, falando do
nosso horror à exportação: “Não custa lembrar que sempre tivemos
horror à exportação: arrancar mercadorias do território nacional,
enviá-las ao exterior, isto sempre se nos afigurou atividade criminosa
e condenável”. Talvez fosse o trauma de ver desaparecer no mar o
ouro das Minas, os diamantes do Tijuco. E com isso, não chegamos
a adotar a mentalidade da troca, do vai-e-vem que enriquece — e
que, hoje, é o único modo possível de viver.
Defensor entusiasta da abertura para o exterior
E Schmidt continua, na defesa da sua idéia de
abertura para o exterior: “O que gera o círculo que tanto nos constrange
não é bem o lucro que a empresa estrangeira possa retirar do Brasil,
senão a dolorosa e invencível impressão de que os estrangeiros vão
levar para longe a riqueza quente das entranhas da nossa terra”.
É o nosso complexo, a nossa postura “colonial”. “E não nos damos
conta de que em perigo de perder a sua independência estará o país
que não tiver o que exportar, o que negociar com outros países”.
Depois, vem JK; e Schmidt, pela primeira vez,
encontra a sua grande chance — a chance de participar da invenção
de um país. Ele foi uma cabeça brilhante no círculo juscelinista,
dedicando-se, especialmente, a pensar política externa — como a
Operação Pan-Americana (OPA), a que dedicou extraordinária paixão.
Anos depois (para a revista “Manchete”), ele tentaria um retrato
de JK: “Quando o tempo, que é o vento da História, dispersar no
esquecimento os senões, as fraquezas, os erros de Juscelino Kubitschek;
quando ninguém mais se lembrar da ríspida e desumana campanha que
ele sofreu, os seus cinco anos de governo surgirão como realmente
o foram: uma época criadora, o início de um verdadeiro entendimento
do Brasil, da grandeza da tarefa do nosso povo em relação ao seu
imenso destino. O governo Kubitschek foi um governo grande; o governo
inaugural desse Brasil Grande de que está grávida a nossa esperança”.
País insensível aos interesses nacionais
O Brasil se movia; pela primeira vez, aparecia
gente achando que o país podia dar certo. As boas perspectivas de
desenvolvimento foram traídas pela política. O impetuoso movimento
janista acabou no que se viu; e a incompetência de Jango não era
negada nem por gente que simpatizava com ele. Schmidt se contorcia.
Como nesse artigo, para o GLOBO, escrito dois dias antes do 31 de
março de 1964: “O que está acontecendo no Brasil ultrapassa qualquer
coisa imaginada. Somos uma nação que toca no fundo da sua capacidade
de humilhar-se. A insensibilidade para o trato dos interesses nacionais
passou a ser o apanágio do governo. Ninguém sabe nada, a começar
pelo presidente da República. Este é, na verdade, um homem totalmente
despreparado, e da espécie dos despreparados simuladores. Não sabe
o que quer; ou sabe apenas as coisas confusas dos seus pobres desejos.
Os seus partidários se entredevoram”.
Era a véspera do golpe. Schmidt não chegou a
fazer parte do novo esquema. Sentia-se à margem — e triste. Como
nesse artigo, escrito no ano da sua morte (1965): “Será que estou
desvairado? Pergunto-me se não funciona no meu raciocínio o ressentimento
de me saber banido da vida pública. Será que estou tresvariando?
Ou procede a constância com que reclamo uma revolução na maneira
de compreender o Brasil? Será que não nos damos conta de que somos
uma terra imensa com uma economia microscópica, pequena, confusa
e triste? Que exportamos cada vez menos? Deus sabe que estou entre
os que desejam que tudo vá bem. E o quero. Não por patriotismo,
mas por cansaço de uma velha, exausta, paradoxal e malsinada vocação
de profeta”. Era Schmidt definindo-se a si mesmo.
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
Rio de Janeiro
05/04/2003
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