POETA DO NOSSO TEMPO
Tríptico, de Eduardo Mondolfo
Wilson Martins
Talvez a poesia seja tudo isso ao mesmo tempo:
ironia e sarcasmo, unamuniano sentimento trágico da vida, visão
fatídica da existência, espírito oracular e crença nos oráculos,
a luta pela expressão em que Fidelino de Figueiredo resumia o destino
do escritor, a ânsia de vencer o que Graça Aranha chamava de terror
cósmico (sob generalizada incompreensão), o impulso de superar o
homem, enfim, em termos literários, “lirismo epopéia drama”, triângulo
proposto por Ernest Bovet para enquadrar as três “idades” da literatura
(“Lyrisme Epopée Drame: une loi de l’histoire littéraire expliquée
par l’évolution genérale”. Paris, 1911).
Se a poesia for isso, então Eduardo Mondolfo
será um poeta do nosso tempo (“Tríptico”. Rio: Topbooks, 2003).
Segundo Alexei Bueno no posfácio, ele “faz o inventário satírico,
trágico e utópico da nossa vida nesse impávido colosso que é o Brasil”.
Na verdade, vai mais longe (ou vem de mais longe...), incluindo
o país enquanto entidade mental, a ser visto essencialmente como
fenômeno de civilização nas perspectivas da História. No caso, os
três poemas aqui reunidos formam, em essência, um único poema, “falam
de três países diferentes: do Brasil oscilando entre o gozo e o
desastre; de Nova York deixando de ser, do novo século, o centro;
e de paisagens emocionais que deslocam a pátria para aquele velho
palco interno”.
Comecemos pelas cidades, fruto e conseqüência
da História, que, entretanto, as originou: surgiram ao acaso, desenvolvendo-se
espontaneamente pelos imperativos de sua própria lógica orgânica,
contrapostas às duas ou três expressamente planejadas como projeto
de lógica urbana, logo contrariada pelas obscuras leis que as pranchetas
não poderiam incluir. Assim, Brasília, que, na concepção original,
seria a cidade socialista e igualitária do futuro, começou por tornar
impossível o deslocamento fácil, rápido e barato dos trabalhadores
— e, programada para a renovação política, recaiu nos mecanismos
“burgueses” das velhas repúblicas. O que, aliás, era previsível.
Em Brasília, diz o poeta com alguma violência,
os “cachorros com terno e gravata” protegem as próprias ninhadas,
partindo daí para o novo retrato do Brasil na sólida pauta do antiufanismo:
“Já vi fuzileiros navais guiando táxis / depois do quartel, para
fazer mercado. (...) Já vi almirantes que não sabiam nadar / e testavam
estratégias jogando baralho. // Já vi generais que não sabiam atirar
/ e por isso fizeram de alvo o Estado. / Tivemos presidentes que
só decidiam drogados (...) tivemos estadistas que se suicidaram
/ e uma maioria douta em criar cadáveres (...)”.
O requisitório continua com o capítulo das misérias
e das grandezas em que, segundo parece, as misérias predominam,
ao contrário do que aprendemos na escola e nos manuais de instrução
moral e cívica: “Somos um prostíbulo, com um incêndio interminável
/ onde juízes fogem da justiça, e são entrevistados / em shows ao
vivo, na TV, domingo à tarde. / Temos governadores que nasceram
no rádio / e montaram um governo só com pediatras (...). Temos senadores
que são anjos do narcotráfico / e assaltantes pobres que morrem
atrás das grades. / Banqueiros cujas dívidas nos são tributadas
/ e hospitais onde se morre de simples resfriado (...).”
“São versos de amor e de desabafo”, diz o poeta
em outra passagem, porque, afinal de contas, Brasília é também o
emblema de nosso tropismo para a modernidade, não se tendo transformado,
apesar de tudo, nas ruínas arqueológicas antecipadas por Otto Maria
Carpeaux num momento de pessimismo. Eduardo Mondolfo está longe
de ser o novo conde de Afonso Celso, situando-se no movimento pendular
oposto que nos leva intermitentemente para o ufanismo e o antiufanismo.
Cidades mais importantes e de grande arrogância acabaram por receber
o fogo destruidor do céu, objeto do que será o mais belo segmento
do conjunto (“A grande visão”). O tom e a abordagem lembram a drummondiana
“Máquina do mundo”, transmitindo a inesperada visão de uma testemunha:
“Cheguei, como de costume, ao escritório / naquele onze de setembro
/ pegando o metrô das sete horas / até o World Trade Center. (...)
Na casa de subúrbio onde moro / esquilos entram e saem sem receio.
(...) No céu azul de Nova York / surgia a mesma riqueza de sempre.
(...) De repente, ouvi um grande estrondo / como se Deus desse um
soco na mesa (...). Parecia mais um terremoto / Ou vulcão, porque
enxerguei labaredas. E línguas de fogo e fumaça e corpos / subiram
aos céus, como chuva, da terra. / Seguiram-se explosões. Ainda que
menores. / Convulsões de aço. Flocos de concreto. (...)”.
As citações fragmentárias reduzem o texto a excertos
episódicos, exatamente opostos à unidade profunda do poema, cuja
verdadeira grandeza só se pode perceber à leitura integral na sua
palpitação visceral. Não se trata de um desastre urbano, mas da
nova tempestade de ferro e fogo, provinda do Antigo Testamento com
suas maldições bíblicas. O ataque puramente mecânico toma o corpo
e o sentido de uma convulsão cósmica, com animais mitológicos sobrevoando
a cidade em formas pré-históricas: “No céu azul, nós nos víamos
grudados / à imagem afastada da tela / até que a Grande Visão tomou
cara / e soubemo-nos o alvo certo. / No canto do vídeo, uma nova
aeronave / surgiu como um míssil, na trégua. / Soubemos então que
era um ataque / Um tiro no coração da América. (...) Olhei na janela
e o vi entrar / com seu bico e a boca aberta. (...) O grande bico
rompendo-nos em parte / e ferindo de morte a América. / O grande
bico da águia de aço / fazendo-nos sentir alimento. / O grande bico
da grande estocada / de caça que se armou com gente. / O grande
bico, e depois, as duas asas / e a explosão na qual dissolvemo-nos”.
O que bem pode ser reminiscência involuntária
dos versos premonitórios de Drummond: “A morte baixou dos ermos,
/ gavião molhado (...) Seu bico / vai lavrando o paredão / e dissolvendo
a cidade”. Caberia ainda aludir a “Morte no avião”, poema encerrado,
entretanto, numa nota de ceticismo fatalista, enquanto o terceiro
painel do “Tríptico” regressa, por inesperado, à nota lírica (depois
da epopéia e do drama), para terminar numa lição de esperança e
otimismo, certamente anticlimática. A inoportuna intromissão do
lugar-comum sentimental e da facilidade repetitiva no corpo do poema
corresponde àquela “eiva congênita” que o tenebroso Hamlet dizia
existir na compleição de certos homens, marcando-os como defeito
irreparável: a ruptura de tom compromete a harmonia do conjunto.
Até a desgastada lua dos adolescentes românticos reaparece como
imagem “poética”: “Querendo perder-se na amada / como a lua se esconde
ao nascente”.
Com isso, Mondolfo ficou sendo um bom poeta do
nosso tempo, quando poderia ter sido um grande poeta do nosso tempo.
O cataclisma das duas torres, que outrora vigiavam a cidade como
animais pré-históricos perambulando pelos arredores, foi qualquer
coisa como a metáfora de idades geológicas que desapareceram, prenúncio
do sempre ameaçador Juízo Final com que nos atemorizam desde o começo
dos tempos. .
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
Rio de Janeiro
14/02/2004
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