TOLENTINO EM DOIS
TEMPOS
Refundindo sua coletânea de estréia, Bruno Tolentino
acrescenta à lírica contemporânea um grande
livro
Miguel Sanches Neto
Além do grande polemista, cada vez mais indispensável
em nossa cultura sonsa, há em Bruno Tolentino o poeta. Não
que estas duas facetas estejam separadas. Difícil é
dizer onde termina o poeta e onde começa o provocador, que
tem colocado abaixo muitos de nossos ídolos de pés-de-barro.
A reedição de seu livro de estréia, "Anulação
& outros reparos" (Topbooks, 1998), publicado em
1963, é muito mais do que uma reedição. Trata-se
de outro livro, em que dois poetas distintos se confrontam numa
queda de braço em que, ao que tudo indica, não existe
vencedor. De um lado temos o jovem poeta, com suas crises sentimentais
e metafísicas; do outro, o poeta maduro que, embora perceba
os ridículos e exageros de seu antepassado, não consegue
deixar de se comover com ele.
Isso faz com que o livro agora editado conte
com um contraponto, um olhar crítico, colocado nas extremidades
do volume, ou seja, no poema inicial, "Ao divino assassino",
e no final, "Uma romã para 1997", espécie
de parênteses poético que envolvem os textos da juventude.
Muito mais do que uma simples reedição, portanto,
estamos diante de uma obra nova, em que a problemática inicial
– uma desesperada percepção da passagem do tempo,
que levava o jovem ao confronto permanente com o cinéreo
e o funéreo, detonado por uma paixão frustrada que
subitamente transforma o presente em passado – é acrescida
por uma reflexão sobre os caminhos da poesia e da vida para
aquele jovem que se encadernava em uma obra marcada por um discurso
grandiloqüente. Vejamos primeiro o que estava em jogo nos poemas
mantidos nesta edição, segundo o poeta, definitiva.
Composto por textos do fim da década de
50 e começo da de 60, a produção do jovem Bruno
Tolentino se reveste de uma armadura erudita. Não existem
concessões à modernidade, mas um profundo desejo de
ligação com um universo lírico estável.
Isso pode ser visto no uso de um léxico marcadamente poético
e na sua preferência pela forma fixa. Assim, linguagem e forma
aspiram a uma condição permanente, revelando um autor
que não tem como meta a constituição de uma
linguagem vinculada ao tempo presente, pelo medo de ligar-se ao
perecível. O seu objetivo é vincular a linguagem à
língua, rompendo os lastros temporâneos. E isso é
feito através do estabelecimento de conexões não
apenas com poetas já clássicos, mas com todo um arcabouço
de referências mitopoéticas.
Ele se coloca, portanto, nos antípodas
do ideário modernista, que estava sendo reproposto na década
de 50 pelas vanguardas temporãs. Para o poeta modernista,
a poesia devia assumir o tempo presente, fazendo do provisório,
e não mais do eterno, o seu campo de ação.
O senso do precário vai marcar uma geração
que, para dar lugar aos fatos cotidianos, abriu mão da língua
universal e atemporal, agora recortada por uma poesia coloquial,
próxima da prosa de rua. É bom lembrar que a poética
modernista, estando desde o início ligada ao advento da sociedade
da máquina, absorve desta o princípio de obsolescência.
O poeta trabalha com a matéria transitória, falando
do agora para o agora. A poesia assim concebida se assume como falência,
como morte.
Era natural, portanto, que o jovem poeta, vivendo
uma crise sentimental e metafísica, desdenhasse esta herança
imediata e buscasse em outra filosofia de composição
a sua mundividência. Lutando contra a anulação
da matéria, encontrada em cada exemplo por ele vivido, o
jovem transferia para o matrimônio poético com uma
linguagem elevada o seu desejo de permanência. Isso fica claro
até em "Ao divino assassino", poema recente e mais
sereno em que chora a perda definitiva da mulher amada, que ele
já havia perdido para outro. O último verso revela
uma fé na transcendência: "mata, Senhor, que a
morte não faz mal!" (p. 21). Para o jovem Tolentino,
só se consegue reparar os estragos da anulação
investindo numa forma e numa linguagem voltadas para a permanência:
"[...] linguagem / em que um mínimo / há de //
ou arder / ou salvar-se / para sempre" (p. 151). Sua Ars
poetica é clara ao postular uma junção
dos cacos do tempo: "[...] a hera seca e o muro cai por dentro,
mas certo incêndio solitário pode a seu vitral sem
face atar o tempo" (p. 94).
Mesmo este poder de retenção da
vida que se esvai passa por questionamentos, como no poema "Ária
para o centauro", em que o poeta duvida que a erosão
sem freios possa sem contida. Tal desconfiança, no entanto,
não impede que ele invista numa linguagem voltada para o
eterno, fugindo de tudo que esteja muito ligado ao precário
presente. Fuga esta que o conduz ao hermetismo. Através de
um verbo enigmático, em que a realidade fica dissolvida,
ou adiada, o poeta encontra uma possibilidade de desvincular-se
de suas circunstâncias, projetando-se, via criação
literária, para além delas. Logo, sua poética
oblíqua marca um desejo de neutralizar o confessional.
Este retrato do poeta quando jovem revela-o
como um centauro – o ser cindido, metade espírito,
metade matéria, que vive a condição dolorosa
de quem quer ascender e se sente preso à animalidade. A prática
da poesia, através de um verbo perene, é a forma que
ele encontra para transfigurar-se. E ele aceita esta tarefa obsessivamente.
Embora marcado pelo excessivo, característica
própria da juventude, a parte de "Anulação
& outros reparos" que vem da primeira edição
guarda um intenso poder de comoção. É impossível
ler estas cultas produções da mocidade sem se deixar
impregnar pelo espírito exasperante de quem se debate para
conter a ação corrosiva do tempo. Há versos
realmente primorosos neste livro, como os que seguem:
E mesmo as árvores da infância são
tamanhas,
Plantaste-as e não cabem em vossos braços. (p. 90)
Constatar a beleza de alguns grandes poemas e de muitos versos e
a força do conjunto não deve nos impedir de ver nele
os elementos da imaturidade. Destes, o mais gritante é o
uso de linguagens emprestadas. Há, portanto, um tom estudantil
no livro, visível tanto no número de citações
(principalmente em outras línguas), que é uma maneira
escancarada de o jovem mostrar que leu as grandes obras - isso é
muito freqüente em poetas brasileiros do período romântico-,
quanto no uso de uma linguagem gratuitamente complicada.
Ciente destes problemas, é o próprio
Bruno Tolentino quem aponta isso no último poema do livro.
Em "Uma romã para 1997", escrito num verso curto
(de quadro sílabas), vizinho da prosa, o que lhe dá
um tom de crônica, o poeta se olha no livro da década
de 60 e vê que, na verdade, não está diante
de um retrato, mas da caricatura do poeta quando jovem. Este longo
texto é uma sorte de "vida passada a limpo", em
que o autor revê toda a sua experiência literária,
ora tentando entender os porquês de certas idéias juvenis,
ora se deixando comover por sua sina torta, prefigurada nos verdes
anos.
O poema, um diálogo com o poeta em formação
que ele foi, define a própria natureza dialética de
um livro em que duas maneiras distintas de fazer poesia estão
se confrontando. "Uma romã para 1997" marca uma
evolução rumo à linguagem sem complicações
desnecessárias, que poda o excessivo e substituiu a crença
no elevado por uma valorização do baixo, do sujo.
Não folheaste
jasmins, jacintos,
nardos, cardos
em labirintos
coisa nenhuma:
tua canção
e a flor das mãos
não tinha haste,
tinha espartilho,
era só bruma,
perfume e brilho.
Faltava o estrume. (p. 223)
Desta forma, o poeta busca a completude, apropriando-se dos elementos
ausentes naquele seu livro, num encontro com o que habita o real,
o chão da existência, a linguagem humilde. É
também um exercício de preparação para
a morte, incorporada à própria linguagem. Este pungente
diálogo não só potencializa os poemas matinais
como transforma "Anulação & outros reparos"
em um dos grandes livros da poesia brasileira desta segunda metade
do século, fazendo com que fique representada nele a superação
da poética da fantasia e do artifício.
GAZETA DO POVO
18/05/1998
|