COMBUSTÍVEL PARA O DEBATE POLÍTICO
Análise sobre o papel do Estado aponta
razões para seu fracasso em promover a justiça e o
bem-estar social
Jorge Barcellos
Para além da política: mercados,
bem-estar social e o fracasso da burocracia, de William
Mitchell e Randy Simmons / TOPBOOKS e INSTITUTO LIBERAL
Para
além da política: mercados, bem-estar social e
o fracasso da burocracia, que chega agora às livrarias, é
uma obra excelente para descrever a natureza e as falhas do Estado
contemporâneo e péssima para sugerir alternativas.
Tudo porque os autores incluíram em sua quarta parte o ''louvor
da propriedade privada, dos lucros e dos mercados'', assumindo assim
ao que vieram: defender ardorososamente a privatização
e a reforma econômica na sociedade.
O texto editado pela TOPBOOKS leva a marca
do Instituto Liberal e tem prefácio do ex-senador
José Fogaça, servindo de combustível para o
debate político nas eleições que vêm
por aí.
Os autores partem da análise de um dos
grandes temas da ciência política, a crise do Estado
de Bem-Estar Social. Desde o início da década de 80,
mas sobretudo na década de 90, o debate sobre políticas
sociais tem questionado o resultado dos gastos sociais em termos
de melhoria das condições de vida da população
mais pobre, discutindo se é possível pensar outro
modo de fazer as políticas sociais serem mais efetivas na
construção de uma sociedade mais justa.
Nesse debate, três noções
têm-se afirmado: a liberal, que reconhece o direito do cidadão
a receber recursos que garantam sua existência; a do cidadão-consumidor,
que reconhece ao cidadão o direito de escolher os serviços
que consumirá; e a participativa, que aponta para o direito
do cidadão de participar das decisões referentes aos
serviços que lhe são prestados pelo Estado.
O fato de a obra filiar-se a uma das correntes
não significa que não deva ser lida. Ao contrário.
É um exemplo importante de como o campo da Teoria da Escolha
Pública propõe um novo olhar para o papel do Estado
na vida dos cidadãos. A idéia central é a de
que ele não é um ''produtor da excelência e
da virtude'', ou seja, não produz automaticamente bens e
serviços de que necessitamos. Sugerem os autores que é
mais útil aceitar a idéia de que o Estado é
apenas uma ''organização paralela'' que compartilha
com o mercado o objetivo de atender as demandas dos cidadãos.
Os autores de Para além da política,
William Mitchell e Randy T. Simmons, pertencem a universidades do
segundo escalão norte-americanas. São professores
de Ciência Política - o primeiro na Universidade do
Oregon e o segundo na Utah State University - e membros do The Independent
Institute, em Oakland, Califórnia. Seu texto é bem
escrito e tem uma linguagem acessível. O problema não
é a forma, mas o conteúdo.
Afirmam os autores que ''a mediação
política não é eficiente e nem justa na distribuição
da riqueza. Ao contrário, os processos políticos e
a gestão do Estado são capazes de acentuar diferenças,
em vez de reduzi-las''. Criticam os programas sociais governamentais,
vistos como enriquecedores da burocracia e dos fornecedores, não
do povo. Criticam a política de subsídios de Estado,
que segue a mesma lógica de exclusão das classes pobres
de seus benefícios imediatos. O argumento gira em torno da
idéia de que o governo não é o gerador idealizado
de bens públicos.
Mas este argumento contém um segredo:
a necessidade de nivelar Estado e mercado e, se possível,
colocar aquele na dependência deste. Isso é um problema
porque trata como iguais instituições desiguais, ou
que têm, no mínimo, objetivos diferentes. Os autores
não se colocam a questão: para que serve o Estado?
- tratam de descartá-lo de imediato por sua ineficiência.
E aí reside o problema, pois, se toda a crítica ao
Estado é bem-vinda - e os autores têm sucesso nisso
-, não se trata simplesmente de descartá-lo, mas de
levantar elementos para agir como se fosse possível chegar
a esse Estado almejado por todos.
Campo recente de estudos, a Public Choice tem
cerca de 25 anos de idade e instituições nos Estados
Unidos, Europa e Japão. O livro dá conta de seus temas
centrais. A primeira parte trata das falhas do mercado e as soluções
ortodoxas para seus problemas, definindo o ''Estado Idealizado''.
A segunda apresenta a perspectiva da escolha pública e caracteriza
o lado ''não-romântico'' da democracia. A terceira
faz a análise teórica de fracassos públicos.
A quarta recupera os argumentos que valorizam o mercado, o direito
à propriedade e os contratos com o objetivo de limitar os
fins do governo. A inspiração econômica é
de Paul Samuelson, John Kenneth Galbraith e Milton Friedmann, entre
outros.
O primeiro ponto central é referente ao
conceito de bem público. Mitchell e Simmons argumentam que
a existência de bens públicos leva a uma série
de problemas. O principal é a ''falta de incentivo de participar
no fornecimento''. Enquanto os benefícios são socializados,
''os custos são privatizados''. Os autores remontam a origem
do conceito a David Hume, na sua célebre tese sobre a fundamentação
da sociedade política. O problema, para eles, é que
nada garante que os bens públicos sejam consumidos ou ainda
que consigam a satisfação da sociedade.
Os autores mostram que existe uma grave divergência
entre custos sociais e custos privados na gestão da coisa
pública. Para Mitchell & Simmons, o Estado é incapaz
de planejar e ser eficiente. A pergunta que fazem é: ''Boas
intenções no governo produzem bons resultados?'' Para
eles, a resposta é um sonoro não. Mas os autores deixam
de lado o fato de que o poder político é estruturado
justamente para reduzir os custos dos bens necessários à
sociedade mediante negociação. Quando há troca
de interesses entre as partes envolvidas, os custos diminuem.
A análise das falhas do governo é
um capítulo à parte. O esforço dos autores
é mostrar que ''os governos não corrigem facilmente
as falhas de mercado; eles normalmente tornam as coisas piores''.
A razão é que o governo não dispõe das
informações que permitem o incentivo das atividades
do mercado. A conseqüência é que a ''política
democrática moderna é muitas vezes exploradora, desperdiçadora
e destrutiva aos direitos individuais''. A força desse argumento
é impressionante, porque ele coincide com o senso comum,
que vê no Estado o mal e não encontra saída.
O problema é o modelo de política e de democracia
que a Teoria da Escolha Pública pode ocultar.
Ao definir o sistema democrático composto
por quatro grupos - eleitores, eleitos, burocratas e grupos de interesse
- a teoria aplica um modelo estruturalista ao campo dos sistemas
de governo. A conseqüência é a redução
da ética e dos valores à lógica de interesses.
Isso é problemático, porque se trata de fundamentar
um universo onde não existem ideais, apenas processos políticos
definidos em termos de busca racional. Esse modelo foi recentemente
criticado por Gilles Lipovetsky, em Metamorfoses da cultura liberal.
Para este autor, a ética e a defesa da democracia não
são valores a serem defendidos somente pelos movimentos sociais,
mas também, paradoxalmente, pelo mercado. É que, sem
solidariedade, a sociedade terá fim, e com ela o mercado.
Apesar dos perigos que cercam muitas das afirmações
dos autores, eles usam do bom tom. Afirmam que as mais imperfeitas
democracias ainda são melhores que as não-democracias.
O problema é que consideram que, quando existem, os fracassos
do mercado na realidade ''são causados pelo governo''. O
mercado econômico seria mais eficiente do que as instituições
do Estado democrático. As burocracias governamentais não
teriam direção, seriam inertes e ineficientes.
Por isso, Para além da política
é um texto sedutor cujas entrelinhas ocultam um mito perigoso:
o do fracasso do Estado. A questão é se é possível
imaginar um protótipo melhor para a sociedade. Na defesa
de um ideal de solidariedade e dos direitos humanos fundamentais,
o Estado ainda tem um papel importante a cumprir e que o mercado
não é capaz de satisfazer.
Caderno Idéias
JORNAL DO BRASIL
Rio de Janeiro
07/08/2004 |