A OBRA QUE SALVOU O FILÓSOFO DAVID
HUME
Pela primeira vez é publicada no Brasil
a versão integral dos ensaios do pensador
Amandio Gomes
Ensaios morais, políticos e literários,
de David Hume
A
obra mais completa do filósofo escocês David Hume,
o Tratado da natureza humana (editado no Brasil em 2002,
com a excelente tradução de Déborah Danowski),
concentra suas teses mais importantes. Escrito quando era ainda
um jovem, entre 23 e 27 anos de idade, e depois de uma violenta
crise pessoal que chegou a comprometer sua saúde, o Tratado
(que reúne três livros: sobre o conhecimento, as paixões
e a moral) foi praticamente ignorado na época de sua publicação.
Os dois principais artigos publicados sobre essa sua primeira obra,
pouco depois de sua aparição, destacam-se pela leviandade
com seu texto e suas idéias e pela violência contra
seu autor.
Anonimamente, o próprio Hume publica
em 1740, mais de um ano depois da publicação do Tratado,
um ''Sumário'' do Tratado, com a esperança
de atrair-lhe uma atenção mais favorável. De
pouco adiantou. ''Nunca uma tentativa literária fora tão
infeliz'', escreve Hume a respeito do seu Tratado, que ''caíra
natimorto da prensa''.
Mas tendo sido desde muito jovem ''arrebatado
pela paixão pela literatura'', e sendo ''naturalmente dotado
de um temperamento alegre e otimista'', como ele próprio
se descreve em Minha própria vida, Hume rapidamente
se recupera desse fracasso, e logo retoma, com ''o maior ardor'',
seus estudos. Quatro anos depois, ele publica a primeira parte dos
Ensaios morais, políticos e literários.
Sua recepção foi melhor do que
a do Tratado. Mas depois de sua segunda edição,
uma nova decepção. Hume continuava totalmente ignorado
nos meios intelectuais de sua época e agora acumulava ainda
mais um fracasso com a publicação de sua Investigação
sobre o entendimento humano, escrito com a intenção
de dar melhor acabamento às idéias do primeiro livro
do Tratado. Tão firme era seu compromisso com sua
obra que ele continua com a mesma disposição, e escreve
a segunda parte dos Ensaios, intitulada ''Discursos políticos'',
além de uma nova versão para o terceiro livro do Tratado,
a Investigação sobre os princípios da moral.
Passados mais de 10 anos desde a aparição
do Tratado, Hume finalmente começa a ser lido. E foram
justamente os Ensaios morais, políticos e literários
que acabam de ser publicados na íntegra, no Brasil
que mudaram a sorte literária de Hume e garantiram-lhe
a boa fama que gozou ainda em vida.
Era evidente a importância que ele próprio
atribuía aos seus Ensaios, cujas reedições
(10 ao longo de sua vida) acompanhava cuidadosamente. Acrescentava
alguns, retirava outros e, pouco mais de duas semanas antes de morrer,
ainda se preocupava em corrigi-los. E suas correções
incidiam tanto sobre suas idéias quanto sobre sua redação.
Talvez para Hume eles fossem sua filosofia em
ação, e por isso eram até mais importantes
do que a explicitação de suas teses, no Tratado.
Os Ensaios são exemplo de uma filosofia viva, que
não confunde precisão com rigor formal, estéril.
São mesmo a confirmação de que ''Hume fez da
escrita seu principal modo de intervenção nos common
affairs of life'', como escreve o professor Renato Lessa no
instrutivo ensaio que acompanha a recente edição brasileira.
Os temas desses Ensaios são de
uma variedade impressionante. Hume discute desde a liberdade da
imprensa em seu país à coalizão dos partidos,
da poligamia e dos divórcios à relação
do crescimento econômico com os juros, do suicídio
ao amor e o casamento, passando pela dignidade ou vileza da natureza
humana. Dirigidos a leitores não filósofos, eles são
ao mesmo tempo populares, pela escrita graciosa e pelo interesse
geral dos temas, e filosóficos pelo rigor de sua reflexão.
Mas a atual edição brasileira
dos Ensaios de Hume inclui ainda dois textos que merecem
a maior consideração. Um deles é a ''A vida
de David Hume'', escrito por ele próprio, o outro é
a carta de seu amigo Adam Smith ao editor de Hume, William Straham,
onde são relatados os últimos dias de vida do filósofo.
Eles nos ensinam sobre a vida e a morte de uma pessoa comum, sujeito
a paixões mundanas, que dedicou sua vida aos seus escritos,
e que ''com toda sua filosofia, era ainda um homem''. Talvez por
isso ele tenha sido um filósofo extraordinário.
Na história da filosofia, entretanto,
David Hume ficou mais conhecido como um pensador simplório.
Seria mesmo um filósofo menor se nos restringíssemos
à leitura kantiana ou da fenomenologia. Ao tratar da ciência,
limitando-se à mera observação, seu empirismo
era tacanho e só podia mesmo conduzir ao ceticismo; quanto
à moral, era perverso, por tomar a paixão como determinação
da conduta.
Seu empirismo, em toda sua ''pobreza e platitude''
(como diz Kant na Crítica da razão prática),
era então como um ruído indesejável, que podia
confundir a límpida ''voz da Razão''. Mas esse insuportável
ceticismo e essa imoralidade em que teria abandonado o sujeito,
e suas experiências internas, diria ainda Kant, era mais devido
à falta de agudeza intelectual de Hume que não
podia identificar o trabalho da razão já presente
na ciência e na moral cotidiana do que à inconsistência
efetiva da razão.
E foi justamente como esse obtuso interlocutor
de Kant que Hume ganhou mais notoriedade na história da filosofia,
com o único mérito de ter despertado o grande filósofo
alemão de seu ''sono dogmático'', de ter mostrado
que o conhecimento depende da experiência, de ter lhe imposto
a exigência de demarcar na experiência o campo do uso
legítimo da razão, de assim prevenir suas extravagâncias,
como na metafísica tradicional.
Mas foi Kant que se revelou mais comprometido
com a metafísica, que ele renovou como uma metafísica
do a priori, e mesmo com a religião, que ele restabeleceu
''dentro dos limites da simples razão'', conformando a moral
que veio a organizar o pensamento do Sujeito moderno sua Razão
Universal. Enquanto a filosofia de Hume foi de fato o esforço
de pensar fora desse quadro, de realmente ultrapassar o domínio
da Metafísica, de abrir o campo do pensamento moderno, quando
ele ainda se definia no século 18.
O empirismo de sua filosofia não se explicava
pela experiência de um sujeito psicológico dado, como
queria Kant, acéfalo da razão que lhe permitiria superar
o subjetivismo na ciência e o egoísmo na moral (egoísmo
que se mantém ainda quando se atribui à razão
um papel instrumental, que visaria à utilidade ou ao prazer,
numa leitura utilitarista ou hedonista da moral humana). Sua psicologia
empírica era antes o exame da constituição
da subjetividade pela impressão sensível e de reflexão,
pelas paixões e suas conexões. Sua crítica
aos princípios da filosofia antiga e moderna e à causalidade
a priori serviam melhor ao pensamento científico do que a
pretendida fundamentação kantiana da ciência.
Sua filosofia das paixões e moral não se embaraçava
com os problemas ligados ao ego-ismo, à medida que
tomava o ''eu'' individual, fechado sobre si próprio, como
uma ficção, sobre o pano de fundo de uma relação
mais primordial e determinante com o outro, na qual a moral tornava
possível uma maior satisfação das paixões.
Sua concepção de natureza, livre
enfim do finalismo religioso ou filosófico, era compatível
com as invenções propriamente humanas, com os artifícios
(a justiça, o governo, a obediência civil) que tornam
possível a vida nas sociedades civilizadas, e são
a própria natureza se realizando em artifício. A razão
era apresentada como uma paixão suave, que, a seu modo, continua
a tendência natural das paixões de se expandirem. É
assim que em muitos aspectos Hume já antecipava, mais de
um século antes, a filosofia de Nietzsche e a psicanálise
de Freud.
Professor do Instituto de Psicologia da UFRJ
JORNAL DO BRASIL
Rio de Janeiro
21/08/2004 |