A MESMA COISA, de Felipe Fortuna 
            Fabio Riggi  
            Nietzsche gostava de apavorar seus leitores com 
              a ideia do eterno retorno. Em Ecce homo, conta que essa fórmula 
              foi a concepção fundamental de seu Assim falou 
              Zaratustra. É deste último o excerto: 
            
               
                 
                  
  | 
                E não estão as 
                  coisas tão firmemente encadeadas, que este momento arrasta 
                  consigo todas as coisas vindouras? Portanto –– 
                  também a si mesmo! 
                  Porque aquilo, de todas as coisas, que pode caminhar, deverá 
                  ainda, uma vez, percorrer – também esta longa rua 
                  que leva para frente! – 
                  E essa lenta aranha que rasteja ao luar, o próprio luar, 
                  e eu e tu no portal, cochichando um com o outro, cochichando 
                  de coisas eternas – não devemos, todos, já 
                  ter estado aqui?  – e voltar a estar e percorrer essa 
                  outra rua que leva para frente, diante de nós, essa longa, 
                  temerosa rua  – não devemos retornar eternamente? 
                  – 
                  Assim falei cada vez mais baixinho: porque tinha medo dos meus 
                  próprios pensamentos e dos que eles ocultavam. (Rio de 
                  Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 194.) | 
               
             
             
              O conceito de eternidade tem seu lado aterrador. Nietzsche sabia, 
              Sartre provou isso entre quatro paredes – e mesmo a imitação, 
              incluída nesse contexto, transforma-se em algo absurdamente 
              insuportável. 
            Nesse caminho lógico, o passo seguinte 
              seria criar algo novo em defesa de nossa existência particular, 
              desvinculada da transitoriedade da repetição e da 
              eternidade do momento repetido, algo personificado no que vamos 
              chamar aqui de mito da originalidade, tão absurdamente insuportável 
              quanto. 
            E combater um, outro, ambos, sem perspectiva 
              de conclusão, presos a este momento, num embate eterno, é 
              tão assustador quanto. Então começam as ideias 
              suicidas, prontamente evitadas diante da visão de um eterno 
              retorno ao suicídio, tornando-se assim todos os momentos 
              insuportáveis, nauseantes, com os quais temos de conviver. 
            É desse cenário que parte A 
              mesma coisa (Rio de Janeiro: Topbooks, 2012), quinto volume 
              de poesia de Felipe Fortuna. A começar pela quarta capa do 
              livro, com uma ilustração que remete à ficção, 
              La Belle Noiseuse, de Maître Frenhofer, que por sua 
              vez remete a uma carta do teste de Rorschach, abrindo-se a uma infinidade 
              de alusões diferentes para a mesma coisa, tal qual o livro, 
              que começa assim, com um poema homônimo: 
            
               
                 
                  
  | 
                Eu sou igual a um anagrama. 
                  Meu 
                  indeciso amor a Roma me 
                  levou a confundir a imitação. Eu vou 
                  pelo caminho bifurcado, que me basta 
                  e me provoca.  Eu me repito 
                  mesmo 
                  quando não copio. 
                  E o mesmo 
                  acontece 
                  quando me repito: precipício 
                  arremessado ao precipício.  Eu sou o que sou, 
                  responde o Criador. 
                  Portanto: não há limites. Esse infinito 
                  se fez das coisas que já foram. Começarei 
                  de novo, mas apenas começarei, porque 
                  nada é novo para os que sabem o que ainda vem. | 
               
             
            Valho-me novamente da ilustração 
              da quarta capa para interpretar o primeiro verso de A mesma coisa. 
              Nesse sentido, como lemos, não há limites, nada é 
              novo. Atingimos o reino dos comuns. “Você veio juntar-se 
              aos demais”, escreve o poeta. Fato que ele explicita continuamente, 
              bem como o senso de repetição. Em outro momento, lemos: 
            
               
                 
                  
  | 
                Somos cópias. Fazemos 
                  clichês. 
                  Vendemos a mesma ideia 
                  simultaneamente, com permanente disfarce. | 
               
             
             Em meio a referências implícitas 
              harmônicas ao seu questionamento, como Ezra Pound, Haroldo 
              de Campos, Gertrude Stein, e explícitas, como Hart Crane, 
              o autor perpassa o tema (ciente das facilidades dos que são 
              coniventes com a situação descrita, a qual ele próprio, 
              o poeta, pretende convencer-se a praticar). 
            
               
                 
                  
  | 
                Ninguém arrisca. 
                  Você fica, 
                  no final morre o dublê. | 
               
             
             Não importa se o dublê é 
              você mesmo ou a cópia de si, desde que se preserve 
              aquilo que nos faz semelhantes. É então que podemos 
              invocar Aristóteles e sua Arte poética. É 
              também quando o poeta, revestido da tradição 
              por uma cadência de oito silabas poéticas, atravessa 
              a própria ideia da repetição com o segundo 
              poema do livro, sabiamente chamado de “O suicida”. 
            A referência a Aristóteles, aqui, 
              é por ser dele a ideia de que a arte poética em geral 
              se enquadra no conceito de imitação. E de que essa 
              imitação é produzida por meio do ritmo, da 
              linguagem e da harmonia, empregados separadamente ou em conjunto. 
            Assim como Ezra Pound fez uso da melopeia, fanopeia 
              e logopeia (música, imagem e intelecto) para extrair a invenção 
              da imitação, Felipe Fortuna, sabendo que nem isso 
              é possível hoje sem que se caia, uma vez mais, no 
              lugar-comum, fundamenta a sua obra numa concepção 
              suicida, por mais contraditório que isso possa parecer. 
            É neste segundo canto que Felipe Fortuna 
              arremessa sua tese da janela do último andar, colocando-se 
              à disposição da desistência, pedindo 
              para que a repetição o absolva do tempo e da culpa 
              de não ter conseguido apressar aquilo que outros poetas já 
              fizeram. 
            
               
                 
                  
  | 
                E não quero seguir a 
                  esmo 
                  o fio que se produz sem cortes 
                  sobre a rua longa onde piso. 
                  Não sigo. 
                  Prefiro que tudo 
                  me deixe sem chão e sem curvas 
                  até que um cansaço sem luzes 
                  traduza meu corpo e o cubra 
                  com uma palavra estrangeira. | 
               
             
             E, seguindo em seu não seguir, o autor 
              sabe e declara o adeus de seu abandono, expondo uma tese suicida, 
              como um livro para acabar com todos os livros, a ser defendida contra 
              a rosa. 
            
               
                 
                  
  | 
                Sou vertical. 
                  Porém, deito 
                  e vou pronunciando adeus. 
                  Os meus amigos me olham morto. | 
               
             
             Temos de brindar a coragem com que o poeta abraça 
              a sua própria causa, sabendo que sua mesmice é uma 
              discordância astuta em relação à mesmice 
              do campo literário. Nem que, para isso, seja necessário 
              um terceiro e último poema, a fechar essa dialética 
              da imitação, que surge contra si mesmo, chamado de 
              “Contra a poesia”. 
            Os primeiros versos desse canto são uma 
              faca em qualquer peito drummondiano e, concomitantemente, uma conclusão 
              ao poema anterior (também um fluxo em resposta ao represamento 
              do anterior): a frustração de não ter inventado 
              a roda dá origem a uma nova torrente, um motivo para o canto, 
              que floresce em direção contrária à 
              poesia. 
            
               
                 
                  
  | 
                Abre-se uma flor e nada há: 
                    a origem do mundo não foi vista 
                    e pela via negativa 
                    o poeta se inclina sem medida. 
                  Agora precisa seguir. 
                  As palavras servem à poesia, mas 
                    têm razão?  | 
               
             
            Neste último canto, o poeta sabe que a 
              poesia precisa seguir, embora ele mesmo não venha seguindo 
              com os poetas, pois eles mentem 
            
               
                 
                  
  | 
                sem história 
                  sem juízo. Para eles, 
                  o fim é o começo, mas eu não sigo. | 
               
             
             Em contrapartida, recolhe-se ao sabor da vida 
              propriamente dita, que oferece absurdo suficiente para infinitas 
              vidas, deixando à poesia que se lê na folha de papel 
              não mais que a celebridade passageira que faz a fama do poeta 
              e o impede, por isso mesmo, de ser poeta. 
            
               
                 
                  
  | 
                Basta um pouco de verdade: 
                  tudo em torno 
                  passa a ser 
                  intensamente um novo sonho, 
                  sem distração. | 
               
             
             Com isso ele está apto a retomar a construção 
              de sua falácia transcendental e, tal qual o Criador, pronunciar: 
              “eu sou o que sou”, e conclamar os outros a entrarem 
              na barca. 
            
               
                 
                  
  | 
                Pergunte a ele, no sol a pino, 
                  qual o sentido? 
                  Deixe que diga com submarina 
                  voz e seus cabelos 
                  o que pretendeu? 
                  Ninguém virá 
                  ninguém virá em seu socorro 
                  e a cidade apagará. | 
               
             
            É honesto em seu questionamento, do começo 
              ao fim, não vende utopias, criando, assim, a maior delas. 
              É nisso mesmo, em seu próprio paradoxo, que ele luta 
              diante de um possível contra-argumento. Aqueles que poderiam 
              tomá-lo, sectariamente, por um elogio da mesmice fazem, eles 
              próprios, uma concessão ao banal. Afinal, não 
              é porque uma questão está batida que ela esteja 
              esgotada. Pelo contrário, em certos casos, prova-se que abandonar 
              um tema pelo excesso de repetição é ilusório 
              e, acima de tudo, um meio para a banalidade. 
            Sobre Fabio Riggi: Jornalista, canhoto. 
              Escreveu mundo menor e mio cardio entre 2002 e 2004, 
              publicados em tiragem ínfima e distribuída aos amigos, 
              e os vem reescrevendo desde então. Também apresentou 
              em 2009 a dissertação Ideograma do caos, sobre 
              a poesia e a experiência de Mário Faustino entre 1956 
              e 1959.  
             
              REVISTA SIBILA 
              07/08/2013 
             
            Leia mais: 
            A 
              poesia pensante de Felipe Fortuna 
              Livro 
              de Felipe Fortuna consegue chegar à pedra filosofal 
              Em 
              defesa da poesia 
              A 
              mesma coisa 
              A 
              ânsia de ser o mesmo sendo outro diferente 
              Reflexão 
              inquieta e crítica 
              Poemas 
              inquietos 
             |