ROMANCE NARRA A VIDA BREVE DE CRUZ E SOUSA
Nelson Patriota
Convocando a erudição da cátedra
e os recursos oferecidos pela arte do romance, a professora e escritora
carioca Margarida Patriota se debruça sobre a vida do poeta
Cruz e Sousa, filho de escravos e vivendo ele próprio, por
algum tempo, os estertores do regime escravista, para entregá-lo
à reflexão e fruição estética
de nossos dias. De fato, “A lenda de João, o assinalado:
Cruz e Sousa, o poeta negro” (Topbooks, 2012) não é
apenas um relato biográfico do mestre do Simbolismo brasileiro,
embora procure acompanhar passo a passo a biografia do poeta, desde
seu nascimento num lar de escravos, numa casa-grande de Desterro,
hoje Florianópolis, propriedade de um militar catarinense
que participa da guerra do Paraguai. A obra, porém, transborda
as fronteiras do biográfico para restaurar as lacunas eventuais
através da criação romanesca.
A lenda que encima o título dessa nova
obra de Margarida Patriota deve parte de si aos artifícios
romanescos de que ela lançou mão para compor, por
paradoxal que pareça, um dos retratos mais realistas, mais
crus, por assim dizer, desse poeta que viveu sua “via crucis”
com a “hybris” de um trágico grego. Para dar
corpo a esse relato, Margarida define um grupo de interlocutores
primários, dentre os quais se destacam, além da professora
Clara Angélica, um mago inominado e o espectro do poeta Charles
Baudelaire, mestre do Simbolismo francês. Com eles, o romance
presta o valioso serviço de explicar o que, na biografia
do poeta, são hiatos e interrogações.
O diálogo que Cruz e Sousa trava com o
espectro de Baudelaire é em tudo premonitório do destino
que aguarda o Assinalado. Vale salientar que o bardo gaulês
não o poupa de admoestações, sendo a maior
delas a narração das grandes linhas da trágica
vida que teve e que o levou a se tornar rebelde e cínico
e, mais importante, a nutrir a fé no poder redentor da escrita.
Sem aderir ao cinismo do francês, Cruz e Sousa abraça
a rebeldia e se entrega à paixão salvadora da escrita,
lançando no Brasil as bases do Simbolismo, em aberto litígio
com os partidários do Parnaso. De quebra, funda a sua própria
lenda, como já lhe antecipara umas poucas vezes o indefectível
e vaporoso Mago.
A partir daí, a narrativa ganha um ritmo
estrepitoso que assume tons cada vez mais sombrios e, por fim, ares
de réquiem: num primeiro momento, quando Núbia, a
mulher do poeta, é acometida de um profundo alheamento, motivo
pelo qual é internada numa Casa de Misericórdia. Enquanto
isso, o poeta tem de se virar com seus magros proventos, recebidos
de uma colocação obtida como arquivista do Serviço
Nacional de Tropas e Muares para alimentar a si e a três filhos
menores. Quanto à poesia, continua a escrevê-la, mas
de modo mais disperso e fragmentário.
Até que um dia a lucidez retorna à
alma de Núbia. Mas a melhora é só um interlúdio
para o drama final que arrastará o poeta ao calvário
da tísica, levando-o à morte aos 36 anos. Nesse ínterim,
reside no bairro do Encantado, no Rio de Janeiro, então capital
do Império. A condição de ex-servo, porém,
não lhe franqueia acesso aos círculos literários
cariocas, embora não impeça que um pequeno círculo
de admiradores se aglutine em torno do autor de “Broquéis”.
É essa saga bem brasileira que
Margarida Patriota nos oferece em seu admirável retrato de
João da Cruz e Sousa, mestre do Simbolismo. Nada há
o que reparar à linguagem e à artesania textual da
autora, narradora dotada de múltiplos recursos novelescos,
o que confere à sua escritura um verniz de contida erudição.
Mais do que isso, seu livro presta um serviço inestimável
à memória e à obra de Cruz de Sousa, avizinhando-as
de nós.
Tribuna do Norte
20/01/2013
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