O TRANSGRESSOR MAIS ADORADO
A obra completa do poeta francês Arthur
Rimbaud, que parou de escrever aos 20 anos, recebe primorosa tradução
pelo poeta mineiro Ivo Barroso
Luís Antônio Giron
O
poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891) ganhou admiradores
entre seus colegas brasileiros. Vinicius de Moraes e outros se inspiraram
nos poemas ''As Iluminações'' e ''Oração
da Tarde'', nos quais convivem visões proféticas e
palavrões. Apesar disso, ainda não se completou a
tradução brasileira de toda a obra de Rimbaud. A lacuna
deverá ser preenchida quando o escritor Ivo Barroso lançar
a Correspondência de Rimbaud. O volume [já
em fase final de produção] encerrará a
edição da integral do bardo visionário [pela
editora Topbooks].
''Depois de uma vida devotada a ele, vou encerrar
a missão'', promete Barroso, que já traduziu 220 das
250 cartas do poeta - algumas delirantes . Barroso acaba de lançar
o volume Poesia Completa de Rimbaud, em edição
revista. Em janeiro, é a vez da nova edição
da Prosa Poética. O tradutor mineiro reviu a primeira versão
que fez do poema ''Uma Estadia no Inferno'', elogiada em
1971 por Alceu Amoroso Lima - que atribuía sua conversão
ao catolicismo à leitura de Rimbaud. Barroso apresenta textos
como ''Um Coração sob a Sotaina'' e ''Os
Destinos do Amor''. Tudo repleto de anotações
que contextualizam vocabulário e circunstâncias de
cada título.
O tradutor reconhece que a devoção
ao autor é trabalho insano em qualquer língua. ''Rimbaud
nunca tem fim'', diz. No volume que acaba de sair, ele refez a fantasia
''Minha Boêmia'', que conta a história de um
caminhante de bolsos descosidos e calças com furos que lembram
''Alegria, Alegria'', de Caetano Veloso (''Lá ia eu,
de mãos nos bolsos descosidos;/Meu paletó também
tornava-se ideal;/Sob o céu, Musa, eu fui teu súdito
leal/Puxa vida! a sonhar amores destemidos!''). O parentesco com
o tropicalista não se deu por acaso: Rimbaud é um
dos patronos do movimento hippie dos anos 60, quando Caetano compôs
sua canção-programa. A versão de Barroso dá
o tom coloquial que está nos versos em francês.
BOÊMIO
Em uma reunião de poetas em
Paris, o jovem Arthur Rimbaud é o
segundo da esquerda para a direita,
sentado, olhando para Verlaine [...]
Muitas gerações têm cultuado Rimbaud por sua
dupla face. Uma é a do gênio precoce que parou de escrever
aos 20 anos. Esse ''deus da adolescência'' - como o apelidou
o surrealista Paul Claudel - desmontou o verso alexandrino, abrindo
a picada para o Modernismo. A outra face exibe o homem bruto que
rompeu com as convenções, assumiu o homossexualismo
(manteve um caso turbulento com o colega Paul Verlaine, com direito
a tapas e tiros) e aventurou-se no tráfico de armas na África.
Morreu em Marselha, aos 37 anos, de complicações decorrentes
da amputação de uma perna. Sua irmã, Juliette,
não sabia que ele havia sido escritor. O coquetel de atrevimento
em vida e versos tem encantado artistas desde 1898,
quando Paterne Berrichon, marido de Juliette,
divulgou a produção rimbaldiana. Primeiro santo, depois
demônio e hoje guindado a fundador, Rimbaud influenciou beatniks
e outros poetas do rock, como Bob Dylan. Vencida a rebeldia
dos anos 60, ele segue em alta, mesmo que seja mais pela vida turbulenta
que por sua alquimia verbal.
O que sucedeu a Rimbaud acontece a muita
gente. Há quem se destaque na juventude como escritor para
adotar, na idade adulta, ofícios mais prosaicos. ''As pessoas
viram a página da literatura e tocam a vida'', diz Ivo Barroso
- que, curiosamente, aposentou-se como funcionário do Banco
do Brasil, sem abdicar dos versos. Mas o ''passante considerável'',
como Mallarmé definiu Rimbaud, detonou uma fissão
nuclear nas letras, evento que só pode ser saboreado na alta
intensidade de seus poemas, conservada na tradução
de Barroso.
Poemas do livro "Arthur Rimbaud - Poesia
Completa" (Topbooks)
Chanson de la Plus Haute
Tour
Oisive jeunesse À tout asservie;
Par délicatesse
J' ai perdu ma vie.
Ah! Que le temps vienne
Où les coeurs s' éprennent.
Je me suis dit: laisse,
Et qu' on ne te voi:
Et sans la promesse
De plus hautes joies.
Que rien ne t' arrête
Auguste retraite.
J' ai tant fait patience
Qu' a jamais j' oublie;
Craintes et souffrances
Aux cieux sont parties.
Et la soif malsaine
Obscurcit mes veines.
Ainsi la Prairie À l' oubli livrée,
Grandie, et fleurie
D' encens et d' ivraies
Au bourdon farouche
De cent sales mouches. |
Canção da Torre
Mais Alta
Mocidade presa
A tudo oprimida
Por delicadeza
Eu perdi a vida.
Ah! Que o tempo venha
Em que a alma se empenha.
Eu me disse: cessa,
Que ninguém te veja:
E sem a promessa
De algum bem que seja.
A ti só aspiro
Augusto retiro.
Tamanha paciência
Não me hei de esquecer.
Temor e dolência,
Aos céus fiz erguer.
E esta sede estranha
A ofuscar-me a entranha.
Qual o Prado imenso
Condenado a olvido,
Que cresce florido
De joio e de incenso
Ao feroz zunzum das
Moscas imundas. |
Au Cabaret-Vert cinq
heures du soir
Depuis huit jours j' avais déchiré mes bottines
Aux cailloux des chemins. J' entrais à Charleroi.
- Au Cabaret-Vert: je demandai des tartines
De beurre et du jambon qui fût à moitié
froid.
Bienhereux, j' allongeai les jambes sous la table
Verte: je contemplai les sujets très naifs
De la tapisserie. - Et ce fut adorable
Quand la fille aux tétons énormes, aux yeux vifs,
- Celle-là! ce n' est pas un baiser qui l' épeure!
Rieuse, m' apporta des tartines de beurre,
Du jambon tiède, dans un plat colorié,
Du jambon rose et blanc parfumé d' une gousse
D' ail - et m' emplit la chope immense, avec sa mousse
Que dorait un rayon de soleil arriéré.
Octobre 1870 |
No Cabaré-Verde
às cinco horas da tarde
Oito dias a pé, as botinas rasgadas
Nas pedras do caminho: em Charleroi arrio.
- No Cabaré-Verde: pedi umas torradas
Na manteiga e presunto, embora meio frio.
Reconfortado, estendo as pernas sob a mesa
Verde e me ponho a olhar os ingênuos motivos
De uma tapeçaria. - E, adorável surpresa,
Quando a moça de peito enorme e de olhos vivos
- Essa, não há de ser um beijo que a amedronte!
-
Sorridente me trás as torradas e um monte
De presunto bem morno, em prato colorido;
Um presunto rosado e branco, a que perfuma
Um dente de alho, e um chope enorme, cuja espuma
Um raio vem doirar do sol amortecido.
Outubro de 1870 |
Ma Bohème (Fantasie)
Je m' en allais, les poings dans mes poches crevées;
Mon paletot aussi devenait idéal;
J' allais sous le ciel, Muse! et j' étais ton féal;
Oh! là là! que d' amours splendides j' ai rêvées!
Mon unique culotte avait un large trou.
- Petit-Poucet rêveur, j' égrenais dans ma course
Des rimes. Mon auberge était à la Grande-Ourse.
- Mes étoilles au ciel avaient un doux frou-frou.
Et je les écoutais, assis au bord des routes,
Ces bons soirs de septembre où je sentais des gouttes
De rosée à mon front, comme un vin de vigueur;
Où, rimant au millieu des ombres fantastiques,
Comme des lyres, je tirais des élastiques
De mes souliers blessés, un pied près de mon coeur! |
Minha Boêmia (Fantasia)
Lá ia eu, de mãos nos bolsos descosidos;
Meu paletó também tornava-se ideal;
Sob o céu, Musa! Eu fui teu súdito leal;
Puxa vida! A sonhar amores destemidos!
O meu único par de calças tinha furos.
- Pequeno Polegar do sonho ao meu redor
Rimas espalho. Albergo-me à Ursa Maior.
- Os meus astros nos céus rangem frêmitos puros.
Sentado, eu os ouvia, à beira do caminho,
Nas noites de setembro, onde senti tal vinho
O orvalho a rorejar-me as fronte em comoção;
Onde, rimando em meio à imensidões fantásticas,
Eu tomava, qual lira, as botinas elásticas
E tangia um dos pés junto ao meu coração! |
Revista ÉPOCA
Rio de Janeiro
12/12/2004
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