CORDIALMENTE, ARTHUR RIMBAUD
Primeira edição brasileira com
as cartas do poeta mostra uma vida partida em duas, entre o gênio
precoce e a existência errante na África
Miguel Conde
Autorretrato na varanda de casa,
no Harar (1883)Num
dia de julho de 1873, o poeta Paul Verlaine andava pelas ruas de
Londres levando uma rara provisão de comida e a dose costumeira
de bebida para a casa onde vivia com Arthur Rimbaud, o jovem talentoso
por quem há pouco mais de um ano abandonara a mulher, o filho,
o emprego, e de modo geral todos os compromissos que até
então fazi-am dele um integrante respeitável da sociedade
parisiense. Ao se aproximar do número 8 da Great College
Street, porém, ouviu o grito sarcástico do amante:
"Que ar de babaca, com esse arenque e a garrafa na mão!".
Seria apenas uma provocação infantil,
não fossem as incontáveis punhaladas (metafóri-cas
e literais) já trocadas pelos dois escritores em sua rotina
de brigas, bebedeiras e pe-núria. Decidido a encerrar o relacionamento
que descreveu como "um amor de tigres", Verlaine embarcou
para a Antuérpia. Abandonado, Rimbaud escreveu ao amante
uma carta derramada: "Volte, volte, querido amigo, único
amigo, volte. Juro que serei bom. Se fui mordaz com você,
foi só por besteira e teimosia, arrependo-me mais do que
se possa dizer". Verlaine tinha motivos para duvidar. Longe
de ser uma besteira ocasional, a mordacidade era um hábito
cultivado com prazer pelo remetente, como se pode ver no recém-lançado
Arthur Rimbaud: Correspondência (Topbooks, 476 páginas,
R$ 59).
Primeira edição brasileira a reunir
todas as cartas conhecidas de Rimbaud, o livro traz escritos que
vão da adolescência aos últimos dias do poeta,
expondo uma vida intensa e atribulada, partida em duas metades:
a do jovem brilhante, talentoso e impertinente que entremeava maledicências
e trocadilhos escatológicos com poemas hoje contados entre
os maiores da literatura moderna; e a do comerciante objetivo que
relatava em tom só-brio suas expedições pela
África, onde tentava juntar dinheiro para um dia viver de
ren-da, sem trabalhar.
Cartas queimadas pela mulher de Verlaine
Tradução, notas e comentários
são do poeta Ivo Barroso, um rimbaudiano devotado que conclui
assim o trabalho de verter para o português as obras completas
de Rimbaud, formadas ainda pelos volumes "Poesia completa"
e "Prosa poética" lançados também
pela Topbooks. Encerrado o trabalho, iniciado em 1972 com a tradução
de "Uma estadia no inferno", Barroso vai doar sua biblioteca
de e sobre o poeta para o Centro Cultural Banco do Brasil.
Rimbaud sonhando em se engajar nas tropas carlistas,
desenho de Verlaine
– As cartas mostram que Rimbaud era de
uma ironia terrível. Era um cara insuportável, mas
um gênio indiscutível. Considero as "Iluminações"
o maior momento da poesia de todos os tempos. Minha tese é
que depois delas Rimbaud sentiu que não havia nada mais a
fazer. Ele era incapaz de se repetir, evoluía a cada poema
– diz.
As notas contextualizam as cartas e acabam compondo
um breve perfil biográfico do escritor. Algumas poucas cartas
escritas por Verlaine, pela mãe e pela irmã de Rimbaud
também foram incluídas, assim como os depoimentos
de Rimbaud e Verlaine à polícia sobre o episódio
em que o primeiro foi baleado pelo segundo.
No conjunto da correspondência, o relacionamento
dos dois aparece de forma breve, já que a mulher de Verlaine,
Mathilde, destruiu todas as cartas enviadas a seu marido pelo amante.
Quando a irmã de Rimbaud as solicitou, Mathilde respondeu:
"As cartas dirigi-das a Verlaine por seu irmão Rimbaud
em nada poderiam servir à glória desse último.
Se sua família e seus amigos as tivessem lido, como eu e
meu pai, decerto me seriam gratos por havê-las destruído".
Um fragmento de uma carta enviada por Rimbaud
queixando-se da modorra em Charle-ville, sua provinciana cidade
natal, da qual fugia sempre que possível, dá uma ideia
do tom da correspondência: "O trabalho está maisa
está de meu olho. Merda para mim! Merda para mim! Merda para
mim! Merda para mim? Merda para mim! Merda para mim! Merda para
mim! Merda para mim!". longe de mim do que minha unh
Teoria do poeta vidente, que cria sua
linguagem
É em suas primeiras cartas, enviadas
a poetas menores com cuja ajuda Rimbaud contava para ter suas obras
publicadas, que o jovem escritor discorre sobre sua busca por uma
poesia nova. A mais famosa é a enviada a Paul Demeny em maio
de 1871, que começa com o aviso imperativo "Resolvi
proporcionar-lhe uma hora de literatura nova", e pros-segue
com a famosa teoria de Rimbaud do poeta como vidente, que por meio
do "desre-gramento de todos os sentidos" "alcança
o insabido" e deve inventar uma linguagem para dizê-lo:
"A Poesia não marcará mais o ritmo da ação;
ela estará na frente".
Apenas quatro anos depois, aos 21 de idade,
Rimbaud deixaria de lado essas ambições para iniciar
uma segunda vida e uma série de viagens que o levariam por
fim à África. A vida errante e o trabalho em condições
"miseráveis", como diria mais de uma vez, lhe pareciam
melhores do que a permanência na França: "É
evidente que não vim aqui para ser feliz. E todavia não
posso abandonar essas regiões, agora que já sou conhecido
e posso encontrar meios de viver — ao passo que em outra parte
eu apenas morreria de fome".
Os pedidos por livros são frequentes,
mas tudo que o comerciante procura agora são manuais práticos
de construção, geologia, mapas. O talento descritivo
e o humor negro ainda aparecem no entanto em várias cartas,
como aquela em que Rimbaud descreve à mãe e à
irmã sua adaptação às muletas, após
ter a perna amputada devido ao câncer nos ossos que terminaria
por matá-lo. A doença o levaria afinal de volta à
França, de onde saíra para ganhar a vida, e para onde
retornou em busca de cura.
Publicado na capa do Segundo Caderno de O
Globo em 7.12.2009.
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