EM BUSCA DE TRADUÇÃO PARA
A ALMA BRASILEIRA
Per Johns reúne 23 textos em Dioniso
crucificado
Elvia Bezerra
"Exercícios de admiração"
é como Per Johns nomeia os ensaios, na maioria literários,
que reúne nesse Dioniso crucificado. Ao anunciar que
o labor técnico empregado neles jamais se sobrepõe
à alma que os anima, indica que o leitor não deve
esperar análises de exclusivo rigor científico. Se
não pretendesse ele homenagear, com o título de Dioniso
crucificado, o filósofo brasileiro Vicente Ferreira da
Silva, de quem trata no ensaio homônimo, um outro título
possível seria Viagem alma adentro, o do ensaio que
versa sobre a alma brasileira. Estaria assim traduzido o sentido
geral dos vinte e três textos dessa coletânea em que
a alma do autor se mostra palpitante.
Lidos na ordem em que foram dispostos, os textos
têm um encadeamento. Mas, se a seqüência não
for observada, ainda assim se percebe o fio - ou fios - que reponta
ao longo da leitura. O mais importante deles, sem dúvida,
o que conduz o conceito de diferença entre espírito
e alma. O espírito, que é diurno, explica,
contrário à alma, que é noturna, compreende.
Portanto, "a ciência reside no espírito, e a poesia,
lato sensu, na alma" - afirma Per Johns no capítulo
"Bachelard e a concretude do devaneio". É a partir
dessa distinção que o autor dá início
à busca de identificação, em especial, da alma
brasileira.
Per Johns estranha que haja, no quadro "oficial"
da cultura brasileira, "um certo horror a manifestações
que exijam o esforço de ultrapassar a epiderme, como se o
Brasil obrigatoriamente tivesse de resignar-se ao papel que lhe
foi prescrito de país mais afeito à horizontalidade
do pitoresco e circunstancial do que à verticalidade do espírito".
Essa é a razão - pensa ele - dos rótulos de
difíceis ou obscuros imputados aos mergulhos d'alma em que
se aventuraram Cornélio Pena e Lúcio Cardoso, entre
outros, e que faz com que o romance Angústia, de Graciliano
Ramos, de "densidade quase insuportável", seja
ofuscado pela contundência de Vidas secas.
O autor assume tom enérgico ao rejeitar
as classificações uniformizantes a que são
submetidos os países, em função da perfeição
modelar do Primeiro Mundo mas em prejuízo de suas almas.
Reclama, então, o desmanche desse equívoco cristalizado
nas idéias estrangeiras ainda presas à visão
de um Brasil que se esgota no pitoresco e no exótico, habitado
por gente "muito mais afeita à epiderme do que ao espírito".
O ponto alto dessa análise da verticalidade
brasileira se encontra no capítulo "Viagem alma adentro",
em que Per Johns elege o poema "Profundamente", de Manuel
Bandeira, "uma das mais legítimas personificações
poéticas da peculiaríssima alma brasileira",
porque nele se combina "a horizontalidade da ambiência
com a verticalidade em que o eterno surge no efêmero".
A Bandeira junta outros desbravadores da alma brasileira, como Cecília
Meireles, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Augusto Frederico Schmidt,
Joaquim Cardozo, Dante Milano.
O exercício em profundidade do pensamento,
que é como Montaigne concebia o ensaio, encontra em Per Johns
um autor que conjuga elegância, clareza e extraordinária
riqueza de expressão. Não há tropeços.
Ao vigor de argumentações ágeis e de longo
fôlego não falta uma boa dose de irreverência
e descontração, o que faz com que a evidente erudição
do autor, vale dizer, isenta de qualquer pedantismo, sirva, antes
de tudo, para instigar o leitor em vez de inibi-lo.
É o próprio Per Johns quem recomenda
convívio e concentração, mais do que entendimento
puramente intelectual, para se ler autores como Guimarães
Rosa, Clarice Lispector e Rilke. E não se furta a dar seu
testemunho, ao relatar uma experiência pessoal: leu a novela
Cara de Bronze, de Rosa, para um boiadeiro analfabeto do
Estado do Rio, que a assimilou rápida e prazerosamente. Prova
de que "o humano transcende o saber". Nesse momento, assim
como acontece quando narra o sobrevôo que fez no deserto,
ao longo da Mauritânia ("metáfora d'alma"),
Per Johns se deixa ver como o romancista de As aves de Cassandra
(1990) e Cemitérios marinhos às vezes são
festivos (1995, Topbooks), entre outros.
Transitando na literatura dinamarquesa no à-vontade
de quem retorna à sua cultura de origem (seus pais são
dinamarqueses) e com a segurança do ensaísta de Panorama
da literatura dinamarquesa, o autor de Dioniso crucificado
vai unindo a pintura de Munch, a filosofia de Kierkegaard, a literatura
de Hans Christian Andersen ou de Isak Dinesen ( Karen Blixen), na
fina análise do que ele chamou de quintessência do
espírito nórdico.
Em alguns trechos que, pela leveza do estilo,
tangenciam a crônica, o que jamais exclui densidade de pensamento,
os ensaios de Per Johns, a exemplo do que ele diz acontecer com
a poesia de Dora Ferreira da Silva, também iluminam "os
desvãos claro-escuros do ser".
Cultura
O ESTADO DE S.PAULO
São Paulo
26/06/2005
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