TRILHAS SUTIS DO UNIVERSAL
Alberto Mussa
Talvez não exista maneira melhor de compreender
e interpretar um escritor que ir desvendando o seu cânone
pessoal, as obras que compõem seu sistema de referências.
Digo isso a propósito de um livro - "Dioniso crucificado",
recolha de ensaios de Per Johns, autor do conhecido romance "As
aves de Cassandra", premiado com o Jabuti em 1991, e dono de
um círculo restrito mas muito entusiasmado de admiradores.
"Dioniso crucificado" é a reunião de versões
novas de textos já publicados que tratam essencialmente de
literatura e filosofia. É, declaradamente, de natureza impressionista
e traz reflexões sobre temas e obras que formam sua família
intelectual, sendo fácil reconhecer, no tom desses ensaios,
aquele dos romances. Apesar de bem escritos, não são
textos fáceis. Particularmente porque o sistema de referências
de Per Johns, a que já aludi, inclui autores e títulos
nem sempre muito lidos. É necessário, assim, ter certa
familiaridade com uma cultura já clássica, particularmente
filosófica, cada vez mais rara no leitor brasileiro.
Ensaios formam blocos temáticos
Os ensaios estão ordenados de maneira
a formarem blocos temáticos. O primeiro deles consiste em
estudos filosóficos, incluindo textos sobre o filósofo
brasileiro Vicente Ferreira da Silva (cujo título dá
nome à coletânea), sobre a poetisa Dora Ferreira da
Silva (posto neste lugar pelo vínculo temático com
o texto precedente), sobre o mitólogo romeno Mircea Eliade
e sobre o filósofo francês Gaston Bachelard, além
de um importante estudo intitulado "Prometeu no Jardim do Éden".
Este estudo, o primeiro do conjunto, é uma reflexão
sobre a natureza dos mitos e encerra a grande chave para a compreensão
do pensamento de Per Johns ou, mais propriamente, do sentimento
que guia suas impressões ao longo do livro. A idéia
básica é a de que os mitos propõem uma maneira
de compreensão totalizante dos fenômenos, porque esta
se dá pela experimentação, pela vivência
- e não pelo processo lógico, que pressupõe
a análise, ou seja, o desmantelamento do todo para percepção
da parte. Nesse sentido, o processo civilizador, fundado no logos,
representa a destruição dessa capacidade humana de
se integrar no todo natural. E o mito de Prometeu, como o do Pecado
Original, simbolizariam essa perda.
O segundo bloco abre com o ensaio "A pátria de Hamlet",
que trata da "alma" escandinava, seguido de textos sobre
escritores da Suécia e da Dinamarca: Jacobsen, Henrik Stangerup,
Isak Dinensen, Selma Lagerlöf, Ingmar Bergman e Stig Dagerman.
Como está em "A pátria de Hamlet", Per Johns
considera traços característicos da literatura escandinava
a existência de um mistério (não no sentido
policial, é óbvio) e de uma aventura empreendida em
sua direção - que é, em suma, aquele mesmo
processo de experiência totalizante do conhecimento mítico.
A personalidade literária que melhor definiria esse espírito
é a de Hans Christian Andersen, cujos romances nunca superaram
sua obra de fabulista. Aliás, embora Andersen não
tenha um texto dedicado só para si, é uma referência
constante nas reflexões de Johns.
Rainer Maria Rilke, Stefan Zweig e Thomas Eliot
O terceiro bloco reúne estudos sobre
três autores estrangeiros não-escandinavos: Rainer
Maria Rilke, Stefan Zweig e Thomas Eliot. Após esse conjunto,
há o ensaio "Viagem à volta de si mesma",
que me pareceu, ao lado do texto inicial, o mais interessante. Nele,
Per Johns discute um famoso incidente da história naval britânica:
o motim ocorrido no Bounty, em 1789, liderado pelo imediato Fletcher
Christian contra os excessos do capitão William Bligh.
O que interessou Johns não foi exatamente o motim, mas a
fuga de um grupo de amotinados para Pitcairn, uma ilha do Pacífico
cuja localização precisa não constava dos mapas
náuticos de então. Esses amotinados, com suas mulheres
taitianas, tendo descoberto o prazer de uma vida livre e em comunhão
com a natureza, optaram conscientemente por fugir à civilização,
simbolizada pelo capitão Bligh, preferindo o mito ao logos.
O último bloco trata da literatura brasileira. São
seis ensaios: "Regionalismo revisitado: trilhas e veredas"
(que contrapõe os experimentos lingüísticos de
Mário de Andrade e Guimarães Rosa), "Viagem alma
adentro" (sobre a "alma" brasileira contida na obra
dos poetas Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Jorge de Lima,
Murilo Mendes, Augusto Frederico Schmidt, Joaquim Cardozo e Dante
Milano), "Dédalo de arcaicas escrituras" (sobre
a poesia de Ivan Junqueira), "O irmão deserto de Marco
Lucchesi" (autor com quem Per Johns compartilha a erudição
lingüística, literária e filosófica),
"Ficção de assombro e outras magias" (que
trata de Cornélio Pena, Lúcio Cardoso e Clarice Lispector)
e "Realismo fantástico e floração ecológica"
(um balanço abrangente e original sobre nossa literatura
fantástica).
Reflexão sobre a dicotomia Ficção
x História
É, no conjunto, uma literatura
brasileira que não privilegia o conteúdo "exótico",
tendo, por isso, uma aparência mais universal. Per Johns se
ressente dessa busca "superficial" do exotismo, propondo
que os elementos "exóticos" que formaram a experiência
brasileira em contraposição à herança
ocidental - por exemplo, as manifestações religiosas
indígenas e africanas - sejam objeto daquele mesmo processo
de compreensão mítica, como definido no ensaio "Prometeu
no jardim do Éden".
Fecha o livro uma reflexão sobre a dicotomia Ficção
x História, que inclui observações sobre o
pensamento de Gilberto Freyre. Como se vê, é uma vasta
galeria. Um oportuno índice onomástico, no fim do
volume, dá uma idéia de sua dimensão. E eu
arriscaria dizer, com base nesse mesmo índice, que é
Guimarães Rosa - e seu fazendeiro Cara de Bronze, que manda
o vaqueiro Grivo em busca do "quem das coisas" - a grande
chave para apreensão do pensamento de Per Johns.
Alberto Mussa é escritor, autor de "O
enigma de Qaf"
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
Rio de Janeiro
10/09/2005
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busca de tradução para a alma brasileira
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