O PRIMEIRO GRANDE CRÍTICO BRASILEIRO
Livro de José Veríssimo mostra um intelectual
fora do 'centro', atualizado e original
DANIEL PIZA
Veríssimo foi o grande
circulador de idéias de
seu tempoO lugar-comum diz que grandes cabeças surgem em
culturas desenvolvidas, maduras, sólidas; que é preciso haver dezenas
de Paulos Coelhos para que apareça um Machado de Assis. Bem, então
devia haver alguma coisa nas águas do Rio de Janeiro do final do
século 19 para que naquela cidade de não mais que 600 mil habitantes,
num país ainda tão ignorante e atrasado e periférico, brotasse uma
geração de intelectuais que o Brasil, hoje tão maior, talvez não
tenha tido igual depois. Entre esses intelectuais, Machado, claro.
E Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa, Raul Pompéia,
Cruz e Sousa, Euclides da Cunha, etc. - autores, entre 1880 (Memórias
Póstumas de Brás Cubas) e 1902 (Os Sertões), de algumas das maiores
obras-primas da ficção e do ensaio brasileiros.
Talvez a explicação seja que, por menor fosse
tal concentração de mentes brilhantes, ela se dava numa cidade avidamente
alerta para as novidades estrangeiras e ao mesmo tempo intensamente
preocupada em pensar seus próprios problemas e os do país, em meio
à transição do regime monarquista para o republicano. Tal tensão
esquentava a circulação de idéias a ponto de aquele grupo achar
que o surgimento da cultura "desenvolvida, madura, sólida" era justamente
o que estava podendo ser iniciado ali. E para isso era imprescindível,
mais do que dezenas de autores muito populares, contar com um grande
circulador de idéias, que publicava esses autores em revistas e
discutia seus livros nos jornais e era também uma grande cabeça:
José Veríssimo (1857-1916), crítico, ensaísta e historiador literário
cujo Homens e Coisas Estrangeiras acaba de ser salvo do esquecimento
pelo trabalho da editora Topbooks em parceria com a Academia Brasileira
de Letras.
Mais que um editor ou agregador, Veríssimo (não
confundir com a família de Erico e Luis Fernando Verissimo) foi
para a sua geração a principal referência crítica, o disseminador
de opiniões que, concordando ou não, todos os outros autores liam
atentamente. Foi o Sainte-Beuve brasileiro, o crítico que mesmo
quando "errava" era estimulante, o diapasão da conversa intelectual
naquela pretensa ilha Belle Époque dos trópicos. Sem ele não teria
havido o espaço para os grandes críticos das gerações seguintes,
melhores que ele, como Augusto Meyer, Álvaro Lins e Otto Maria Carpeaux,
que refletiram sobre a literatura brasileira e mundial com iguais
ardor e rigor.
Ou basta dizer que, afora Nabuco, era com ele
que Machado de Assis, o gênio daquela geração, trocava o maior número
de cartas. Como nota João Alexandre Barbosa no completo prefácio
à edição, Veríssimo exerceu a liderança crítica de seu tempo.
Homens e Coisas Estrangeiras, publicado originalmente
em três volumes (1902, 1907 e 1910), com textos escritos de 1899
a 1908, traz em suas 685 páginas a maturidade intelectual de Veríssimo,
que nasceu no Pará e aportou aos 34 anos no Rio para escrever em
diários como o Jornal do Brasil, O Imparcial e Jornal do Commercio
e revistas como Kosmos, Renascença e Revista Brasileira - da qual
foi editor no período mais importante, que serviu de berço para
a fundação da Academia Brasileira de Letras em 1897, ao lado de
Machado, Nabuco e outros. Do mesmo período que fez surgir Homens
e Coisas Estrangeiras, veio também a série dos Estudos de Literatura
Brasileira, fundamentais para quem gosta do assunto.
Duas características de sua grandeza são plenamente
visíveis em Homens e Coisas Estrangeiras: a capacidade de usar os
livros para discutir assuntos diversos e importantes e o desprendimento
com que analisa grandes autores internacionais do passado ou do
seu presente. E por que um intelectual brasileiro, mesmo numa era
em que a comunicação ainda dependia de telégrafos e navios, não
poderia falar com propriedade e até originalidade sobre tantos e
novos temas? Veríssimo é outra prova daquilo que, meio século mais
tarde, um intelectual como o mexicano Octávio Paz demonstrou como
poucos: que uma inteligência não precisa estar no "centro" para
ir ao fundo; ao contrário, que pode se valer de sua posição oblíqua
exatamente para achar ângulos distintos.
Como nota Barbosa, Veríssimo se sai melhor como
analista de obras filosóficas e ensaísticas do que de romances,
e algumas das melhores passagens do livro tratam de Nietzsche, da
civilização americana ou do clericalismo ibero-americano. Sobre
os EUA, que dizia admirar mas não estimar (embora subestime sua
literatura, desconhecendo os méritos de Melville, Twain e James,
entre outros), chega a ser profético, em 1907, ao dizer que a hegemonia
mundial daquela potência não tardaria.
Na ficção, tem forte queda pelo naturalismo,
mas, como em seu ensaio sobre Zola, termina sempre levando a discussão
para temas existenciais: "Essa obra foi muitas vezes acusada de
pessimista (...). Pessimista foi sem dúvida, e é a sua glória, por
ter visto quão péssima é esta vida e este mundo, qual a nossa sociedade
o fez. (...) É o pessimismo daqueles que desejam e procuram o melhor,
o pessimismo fecundo que é a mais forte causa do progresso. O otimismo,
sobre ser bobo, é (...) egoísta." No entanto, quando defende Shakespeare
das críticas de Tolstoi, concorda com o escritor russo em que a
função da arte é "transmitir aos homens os sentimentos mais nobres
e melhores da alma humana", embora discorde de que esses sentimentos
se resumam à religião. Se Machado assinaria embaixo o elogio ao
pessimismo sem desespero, certamente reagiria com desdém à idéia
da arte como edificação moral.
Mas é justamente por sempre debater as idéias
por trás das obras que a própria obra de Veríssimo continua viva.
Mesmo quando o lemos sobre um tema morto, como alguns autores portugueses,
há uma inquietude mental em seu texto que nos faz seguir adiante.
E não há como lhe negar a riqueza de sensibilidade, mesmo quando
suas conclusões soam tão equivocadas. "A arte não pode ser sectária,
não pode ser patriótica, não pode ser facciosa", escreve ele, que
admirava em Eça de Queiroz não só o engenho da sintaxe mas também
o caráter do homem. De Veríssimo, sem a genialidade, pode-se dizer
o mesmo.
Caderno 2
O ESTADO DE S.PAULO
São Paulo
28/09/2003
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