DUAS VERSÕES DO EXERCÍCIO
CRÍTICO
Coletâneas de artigos revelam esforço
de análise madura
Alcides Villaça *
A busca de compreensão do fenômeno
literário supõe que a constituição e
a relevância de uma obra se apresentem como problemas. A reação
primeira do leitor crítico não estaca em si mesma,
mas avança por um dos tantos caminhos que se abrem à
investigação e à valorização
do objeto literário. Júlio Castañon Guimarães,
em Entre Reescritas e Esboços, e Felipe Fortuna, em
Esta Poesia e Mais Outra, lançam-se ao exame da literatura
sabendo-a problemática e investigando-a, o primeiro, no caminho
metódico das pesquisas desdobradas, e o segundo, no âmbito
mais vertical e imediato das resenhas. Práticas críticas
tão distintas convergem, por vezes, para objetos comuns,
que iluminam de forma diversa. Ao aproximar aqui essas duas obras
de críticos (e poetas) maduros, não pretendo mais
que realçar as ênfases e os pressupostos de duas bem
definidas vocações.
Júlio Castañon Guimarães
abraça a pesquisa minuciosa, documental, investigativa, para
relevar sobretudo aspectos da produção da literatura
por vezes considerados marginais à obra, como no caso da
correspondência entre os escritores. Interessa ao estudioso
tanto o exame de casos específicos (cartas de Murilo Mendes
a Drummond e Lúcio Cardoso, por exemplo) como a reflexão
sobre o gênero mesmo da correspondência. Resulta desse
duplo movimento a exposição do que seria a gestualidade
dos autores, com a qual fazem reconhecer suas posições
e convicções pessoais, ao mesmo tempo em que o estudioso
vai adensando aspectos definidores desse gênero, como o da
passagem da comunicação privada para a de interesse
público. O pesquisador pondera o que há de construído
literariamente na linguagem das cartas, o que nelas se dá
como fator de distanciamento e/ou de aproximação entre
os interlocutores, no amplo espectro que vai da abertura à
delimitação do espaço pessoal. Está
visto que o fenômeno literário, para Castañon,
supõe como significativos traços por vezes mínimos
e ao mesmo tempo objetivadores da significação mais
ampla de uma obra, ou do projeto em que ela se engaja. Nos bastidores
da escritura, os movimentos são reconhecidos em sua inflexão
para o que surge no palco.
Veja-se, por exemplo, como o exame da correspondência
entre Paulo Leminski e Regis Bonvicino reforça a iluminação
dos movimentos dramáticos da poética leminskiana,
dividida entre a coesão e a dissolução de princípios
construtivos, entre o culto rigoroso e o destravamento das formas.
Ou como no romance Crônica da Casa Assassinada, de
Lúcio Cardoso, o recurso às cartas, trazendo consigo
o que já há de fragmentário no gênero
delas, ajuda a constituir a instabilidade da narração
trágica. Num jogo multiplicativo de remissões intertextuais
e achados de diligente pesquisa, Júlio Castañon mapeia
meticulosamente caminhos da produção literária,
seja investigando a presença de Mallarmé no Brasil,
seja realçando aspectos da interpretação oral
que Drummond e Cabral registraram de seus poemas. É sugestivo
que o autor de Entre Reescritas e Esboços, respeitado
estudioso da poesia de Murilo Mendes, declare interessar-se não
apenas pelo "nível das grandes interpretações
do monumento" que é a obra de Murilo, mas também
pelo "nível das pequenas oscilações"
que se dão em sua elaboração. Custa tempo,
atenção e talento, como se sabe, trilhar com proveito
esse caminho que investiga o mínimo oculto para melhor divisar
e interpretar a produção do essencial.
Já o crítico Felipe Fortuna faz
uma aposta (indiscutivelmente ganha) na sobrevivência em livro
das resenhas literárias nascidas em jornal. Para que isso
se dê, a condição é a de que a resenha
não perca suas "qualidades vitais: o primado da opinião,
a ênfase analítica, a tendência ao debate"
– como propõe o autor, em sua militância como
crítico no extinto Jornal do Brasil. De fato, o leitor
encontrará em Esta Poesia e Mais Outra matéria
crítica de interesse permanente, em discurso ácido,
provocador, a que não falta o poder da argumentação,
pela qual se distinguem o compromisso com a reflexão bem
fundada e o improviso arrogante e politiqueiro. Certa tendência
à iconoclastia e à contestação dos juízos
estabelecidos leva Fortuna a arguir, por exemplo: o prestígio
benevolente e automático das vanguardas agora midiáticas,
tão próximas, na essência, das formalizações
beletrísticas; o insistente e cansativo bordão da
"crise do verso", que pode funcionar como álibi
para poetas aquém ou além de qualquer crise; o compadrismo
literário, pelo qual os afetos pessoais ameaçam tornar-se
critério de valorização estética; a
parcialidade viciosa do crítico Hugo Friedrich no enquadramento
da lírica moderna. A acidez não impede que Felipe
Fortuna reconheça os dramas dos criadores e de suas criações,
como no caso das polaridades vividas e criadas por Waly Salomão
e José Paulo Paes, ou que externe sua paixão de leitor
e tradutor da poeta renascentista francesa Louise Labé, cuja
existência autoral encontra-se, aliás, sub judice acadêmico.
Para o autor de Esta Poesia e Mais Outra,
cabe às resenhas o alcance crítico do pequeno ensaio
– o que prova seu respeito pelos leitores, de jornais e de
livros.
*Alcides Villaça é professor
de Literatura Brasileira na USP
caderno Sabático
O ESTADO DE S.PAULO
30/06/2011
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