A HISTÓRIA DO PRESENTE
O filosofo Benedetto Croce tem lançada
série de ensaios em que define o estudo do passado como a
defesa da "unidade da vida"
Jean Marcel C. França / Especial
para a FOLHA
Os historiadores não são, em geral,
muito simpáticos ao pensamento filosófico. Há
tempos, a tradição da área apregoa que se deve
suspeitar do insidioso avanço dos filósofos sobre
o campo da história e que, para o pesquisador atento, o excesso
de "filosofia" é não somente inútil
como pernicioso. A querela vem de longa data, remontando ao "século
de ouro da história", o século 19, quando a avassaladora
moda das "filosofias da história" (Hegel, Comte,
Marx e tantos outros) ameaçou transformar o paciente e minucioso
trabalho do historiador em uma atividade desprovida de sentido.
Desde então, ainda que aqui e ali se tenham
estabelecido algumas pontes de diálogo, o clima de desconfiança
mútua passou a ser enorme. Dessas tais pontes, uma das que
merecem destaque pelo seu apuro é aquela construída
pelo pensador napolitano Benedetto Croce (1866-1952), um hegeliano
avesso à idéia de "absoluto" e visceralmente
antimarxista, que despendeu uma parte considerável de sua
obra tentando integrar história e filosofia. Uma síntese
de tais esforços, preparada pelo próprio Croce, acaba
de ser traduzida para o português [por Julio Castañon
Guimarães, e publicada pela Topbooks].
Linguagem simples
Trata-se de "História como História
da Liberdade" (1938) - originalmente, "História
como Pensamento e Ação"-, uma volumosa coletânea
de ensaios publicada pelo filósofo já quase no final
de sua vida. "História" não tem, por certo,
a densidade de outros livros de Croce, como "Estética"
(1902), "Lógica" (1909) ou "História
- Teoria e Prática" (1916). Todavia, a obra, escrita
em uma linguagem mais simples do que as mencionadas, permeada de
exemplos e entrecortada por diversas análises historiográficas,
constitui uma excelente introdução ao universo do
napolitano, permitindo ao leitor, mesmo àquele pouco acostumado
ao seu vocabulário, identificar as linhas mestras de seu
pensamento.
Especialmente instrutivas neste sentido são
as duas primeiras e a última das cinco partes que compõem
o livro, ao longo das quais Croce traça uma espécie
de propedêutica da sua história. Ficamos aí
a saber, de saída, que a história proposta pelo filósofo
italiano é sempre uma história do presente, isto é,
uma história que existe somente porque o mundo em que vivemos
nos coloca diante de impasses e de problemas que, para serem superados
-e a história das sociedades humanas é a história
de tais superações-, exigem determinados questionamentos
do passado.
Exigências práticas
A história, como reitera Croce ao longo
de todo o livro, é "um ato de entendimento e compreensão
induzido pelas exigências da vida prática". O
conhecimento histórico é, pois, sempre instável,
provisório, dependente dos questionamentos que o presente
impõe ao passado. Isso, porém, não quer dizer
que Croce seja um adepto de posições relativistas
ou apele a uma solução "irracionalista".
Ao contrário, embora não recorra
a um supra-histórico, a um transcendente, a história
que propõe é dotada de racionalidade em toda a sua
extensão, pressupõe a constante ampliação
e conservação da "liberdade espiritual"
- isto é, o "restabelecimento contínuo da unidade
da vida"-, não abre mão da idéia de progresso
e, sobretudo, se ampara em categorias universais, ainda que, como
salienta o filósofo, tais categorias se manifestem somente
em "particulares concretos".
É, inclusive, a partir dessa necessidade
da história de organizar-se em torno de categorias que se
tecem as estreitas relações que esta mantém
com a filosofia. A bem da verdade, Croce não acredita na
possibilidade de uma "filosofia abstrata", descarnada
de história; do mesmo modo, uma história desprovida
da categorização filosófica não é,
aos seus olhos, história, mas crônica ou anedota.
Ouçamos o pensador: "A filosofia
é a consciência da historiografia, assim inseparável
dela, tal como a consciência é inseparável da
ação moral (...). Quando a filosofia foi definida
conforme a defini, como a "metodologia da história",
não devemos esquecer que a metodologia seria abstrata, a
menos que coincidisse com a interpretação dos acontecimentos,
ou seja, a menos que se renovasse e continuamente se desenvolvesse
junto com a inteligência dos acontecimentos; assim, a divisão
entre filosofia e historiografia só tem uso prático
e propósito didático".
Combater o mal
A terceira e a quarta partes do livro são
dedicadas, respectivamente, a estabelecer as complexas e difíceis
relações entre história e política,
com especial atenção às possibilidades de superação
do "irracional" na historiografia política, e entre
história e moral. Destaca-se, nessa quarta parte, a defesa
da polêmica tese crociana segundo a qual a história
tem um compromisso incontornável com o combate ao "mal",
isto é, com o combate a tudo aquilo que impede a "unidade
da vida".
Croce, por certo, não irá causar
um impacto desconcertante no leitor do século 21, leitor
acostumado, no que tange às relações entre
história e filosofia, às propostas radicais e, por
vezes, até mesmo extravagantes do genericamente denominado
"pensamento pós-moderno". Os problemas abordados
em "História", no entanto, concorde-se ou não
com as soluções do filósofo italiano, estão
longe de terem perdido a sua atualidade.
JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA é
professor de história na Universidade Estadual Paulista,
em Franca (SP), e autor de "Literatura e Sociedade no Rio de
Janeiro Oitocentista"
Caderno Mais!
FOLHA DE S.PAULO
São Paulo
10/12/2006
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como forma de arte
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