HISTÓRIA COMO FORMA DE ARTE
Para Croce, o enfrentamento do passado é
infinito e livre de determinismos
Pedro Duarte de Andrade
Pode a história ter um sentido? Esta velha
interrogação ganhou intensidade no século XX,
pois os horrores de duas guerras mundiais e o advento do totalitarismo
pôs em dúvida não apenas seu progresso, ou seja,
sua direção, como a possibilidade de que tivesse significado.
Noutras palavras, entrava em crise a confiança em uma coerência
absoluta dos diversos acontecimentos entre si, especialmente se
fosse um avanço para o melhor, o que ameaçava deixar
a história como amontoado de fatos sem sentido.
Foi neste clima que Benedetto Croce (1866-1952)
publicou “História como história da liberdade”,
em 1938. Não é nem seu melhor livro, nem o mais importante,
mas espelha o enorme esforço que empreendeu para manter a
dignidade da História como forma de conhecimento do universal,
sem descartar a exigência de fazer justiça às
particularidades que a compõem. Típico intelectual
italiano, com participação na vida política,
Croce escreveu esses textos no calor da hora do fascismo, quando
Mussolini estava no poder. E há neles uma crítica,
se não do regime, pelo menos da lógica histórica
que o sustentava.
Modernas filosofias que esmagam a liberdade
Num dos raros momentos em que se refere concretamente
ao totalitarismo, Croce repudia o uso do termo, pois considera que
sugere uma “total cooperação harmoniosa”,
quando em jogo está uma “sujeição abrangente
e total”. Prefere falar de autoritarismo. Esta sujeição
abrangente e total, não por acaso, é a mesma que encontra
na lógica das modernas filosofias da história, que
tendem a esmagar a liberdade que advém das singularidades
das ações humanas sob o peso metafísico de
uma ordem histórica totalizante.
Essas filosofias determinaram uma lógica
para o movimento da história, pela qual seu começo,
desenvolvimento e fim poderiam ser revelados pelo historiador. Este
historiador ideal deveria encontrar, por trás da aparente
dispersão dos acontecimentos, um modelo oculto de interpretação
verdadeira e última. É o que Croce chama de “necessidade
transcendental” imposta à história, pois supõe
a descoberta de uma matriz explicativa para a realidade além
desta e, de lá, faz com que a realidade seja tal como é.
Daí seu repúdio aos conceitos de “Deus”,
“Espírito”, “Matéria”, “Idéia”
ou “Vontade”, sempre que usados desse modo.
Este mesmo repúdio sente diante do que
chama de “necessidade causal”, típica do naturalismo
e do positivismo. Ele recusa todo determinismo entre acontecimentos,
pois considera que o conceito de “causa” pertence à
ciência natural e lá deve permanecer. Não se
pode subestimar o alcance crítico desta recusa, já
que Croce sublinha, por exemplo, que o conceito de “raça”
deve ser subsumido sob o de “causa”, e rechaçado.
Deste modo, era desbancada, também, a
possibilidade de um cálculo sobre o futuro, uma vez que a
história não poderia jamais ter suas relações
previstas. E aí aparece o grande desafio de Croce: preservar
a liberdade humana na história e, mais que isso, fundar nela
toda a possibilidade da história. Não se trata, portanto,
de opor o reino da necessidade histórica ao da liberdade
humana, mas de fundamentar aquela sobre esta. História como
história da liberdade.
Assim, forjará uma explicação
racional da necessidade histórica positivamente relacionada
à liberdade da vida moral. Para ele, somos o que somos porque
temos a história que temos. Isso nos impede de olhar para
a história como algo que não precisaria ter sido tal
como foi. Sendo o que somos, olhamos para o passado e fazemos história.
Isto dá à história o estatuto
de único verdadeiro conhecimento, pois, seguindo a herança
de Vico (1668-1774), Croce diz que só conhecemos aquilo que
fazemos: a história. Por isso, “a história exige
uma afirmação de verdade que brote de nossa experiência
íntima”, ato de compreensão induzido pela prática.
É esta que, quando não se resolve na ação,
requer entendimento e auto-compreensão. Por isso, em certo
sentido, toda história é sempre “história
contemporânea”, uma vez que os acontecimentos nela relatados,
por mais remotos, vibram segundo práticas presentes.
Há, assim, um “círculo do
espírito”, pelo qual o conhecimento é necessário
para a prática e esta, por sua vez, é necessária
para o conhecimento, mas não numa relação de
determinação, pois Croce rejeita, numa crítica
profética, a substituição dos políticos
pelos técnicos. É que “a ação,
por mais idealmente correlacionada que esteja com a visão
histórica que a precede e a condiciona, é um ato tão
novo e diferente que por sua vez proverá o material para
uma nova e diferente visão histórica”. Eis o
que permite a ousada formulação de que “a escrita
da história liberta-nos da história”.
Croce quer uma história estimulante para
a prática. “Esse conhecimento é vida, e a vida
convida à vida”, diz. Seu problema é o de como
podemos, sendo produtos do passado e vivendo nele, deslocar-nos
para uma nova vida. Este deslocamento depende do enfrentamento do
passado no pensamento, na escrita da história — tese
que dá à história seu teor filosófico,
mas, sobretudo, significa a absorção da filosofia
pela história.
Autor também nega a idéia de
utopia presente em Marx
Pois o enfrentamento do passado é infinito.
Croce recusa “uma condição de vida final ou
paradisíaca”, donde deriva sua negação
também da idéia de utopia. É o que critica
em Hegel e, sobretudo, Marx. Daí surge seu conceito de progresso,
como “forma sempre mais elevada e mais complexa do sofrimento
humano”. Seu modelo de história que permite vislumbrar
tal progresso é artístico: “no tocante a todos
os aspectos da vida, o historiador, na medida em que é movido
por um impulso no sentido do futuro, olha para o passado com o olho
do artista e vê as obras do homem sob essa luz, perfeitas
e imperfeitas, transitórias e permanentes”.
No âmbito mais geral da moral, é
a liberdade que movimenta a história. Não significa
“atribuir à história a tarefa de criar uma liberdade
que não existia no passado mas existirá no futuro”.
Não há um começo datável para a liberdade,
pois é idéia. E estas “não são
fatos históricos, mas os criadores dos fatos da história”.
Liberdade é o motor da história, sejam os tempos melhores
ou piores. Por isso, Croce não podia aceitar que a liberdade
tivesse abandonado o mundo. Pois, para ele, liberdade era um ideal,
jamais completamente atingido porque
sempre implicitamente presente, fazendo “o coração
do homem, em sua condição
humana, bater”.
PEDRO DUARTE DE ANDRADE é doutorando
em filosofia na PUC-Rio
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
Rio de Janeiro
21/04/2007
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