RADIOGRAFIA DE UMA TRAGÉDIA
Mary del Priore recria o terremoto que destruiu Lisboa em 1755
Ronaldo Vainfas
Professor titular de História da UFF
Autora de vasta obra historiográfica, Mary del Priore nos brinda agora com este novo livro sobre o terremoto de Lisboa ocorrido em 1º de novembro de 1755. Resultado de pesquisas desenvolvidas há anos, este não é mais um livro de Mary, historiadora já consagrada pela originalidade de suas obras – como o Ao sul do corpo – pela perícia de sua investigação documental e pela plasticidade de seu texto. O Mal sobre a Terra é, talvez, o principal livro dentre tantos escritos por ela, um presente para a historiografia. Antes de tudo porque reconstitui, sob todos os ângulos, a tessitura de um fato histórico geral sem recuar diante dos detalhes mais ínfimos que o impacto do célebre terremoto ensejou no meado do século 18.
Trata-se de texto historiográfico e, portanto, descritivo, analítico, documentado, explicativo. Mas quem lê o livro parece estar diante de um roteiro de filme, o cotidiano das ruas, o inferno do sismo, o day after, as repercussões. Este é o roteiro dos capítulos, e o primeiro, ''Antes do terremoto'', contém valiosíssima reconstituição da cidade de Lisboa, cenário do enredo e da desgraça narrada no livro. O texto nos conduz pelas ruelas da cidade, seu casario com loja térrea e piso de morada, os prédios públicos, o cais, os palácios, a vida cotidiana, vendedores e benzedeiros, as gentes.
Mary está atenta às hierarquias sociais e aos fortes contrastes entre os modos de vida numa sociedade do Antigo Regime – a de D. João V e a de D. José I – mas prefere sublinhar a calmaria, o cotidiano meio arrastado, como que adequado ao ciclo do nascer, viver e morrer de cada um. Os que buscarem no livro um panorama da Lisboa setecentista encontrarão tudo em detalhes neste capítulo. Os que quiserem se familiarizar com o palco do terremoto também ficarão satisfeitos.
No segundo capítulo, a terra treme sem piedade. Asfavit Deus et dissipatur, Deus soprou e dissipou tudo. A narrativa aí se inicia com as impressões do francês Jacome Ratton, que nesse 1º de novembro, dia de Todos os Santos, resolveu não ir à missa na igreja do Carmo e mal percebeu a agitação dos animais de tração, os cães latindo e correndo pelas ruas, os ratos que deixavam suas tocas, a revoada louca dos pássaros. A terra estava prestes a tremer, e num minuto sorveu o cais da alfândega, derrubou muros, pôs o casario abaixo; igrejas desabaram, soterrando nobres, frades, mulheres, crianças, gente grada, gente vil. O terremoto atropelou, num dia, as hierarquias do Antigo Regime, embora tenha vitimado os mais humildes. A descrição de Mary é preciosa e cinematográfica, uma lição de como a história deve ser escrita.
E nossa autora mostra então as razões, não do terremoto – pois isto foi matéria de vasta polêmica desde o dia seguinte, 2 de novembro – mas dos estragos que o sismo causou na cidade. As faldas rochosas sobre as quais repousava o casario da cidade, os meandros estreitos que recortavam as colinas, tudo isso vulnerabilizava Lisboa. O desalinho da cidade preparou o desastre. A tragédia foi completa, porque depois do tremor veio o maremoto, e parecia que as águas queriam tragar a cidade inteira, submergindo-a. Por fim, os incêndios, contra os quais as escadas ferradas de Holanda tiveram pouco sucesso. Tudo agravado pelo fato de que, sendo dia de festa religiosa, os altares de todas as igrejas e capelas estavam iluminados com velas e lamparinas; daí o fogo se alastrou pelas cortinas e madeiras. Lisboa ardeu.
Morreram milhares. No convento de São Francisco, onde viviam 300 frades, o teto desabou e restaram somente 18; no mosteiro de Santa Clara, morreram 150 freiras; no convento da Trindade, 1.500 mortos; na prisão do Limoeiro, 400 pereceram esmagados por uma parede. Mary inventaria os mortos de todas as classes, valendo-se da crônica e de fontes administrativas. Com acuidade e sensibilidade, chega a comentar sobre os domicílios lisboetas a partir dos róis de mortos: famílias nucleares, média de três filhos, às vezes um escravo ou criado.
O capítulo terceiro trata do day after. Prossegue com a crônica da morte, cujo cheiro exalava em toda parte, reconstitui o tour de force para remover, transportar e enterrar os cadávares, além de orar pelas almas flageladas. No meio das ruínas, facinorosos agiam infrenes, roubando, estuprando, profanando. Neste terceiro ato, a autora vai além e adentra a enorme polêmica que o sismo provocou dentro e fora de Portugal. É caminho para discutir o impacto do saber ilustrado no país, seus embates com as mentalidades coletivas embebidas de religião. Afinal, fora o terremoto causado por forças naturais ou pela cólera de Deus?
O capítulo final trata da memória do terremoto e da polêmica. Fora de Portugal, muitos opinaram sobre o sismo, como Voltaire, que escreveu um poema sobre o desastre de Lisboa. Em carta a um amigo suíço, queixou-se de que 100 comerciantes franceses haviam morrido na tragédia, enquanto o palácio da Inquisição continuara de pé. Consolava-o, porém, que ao menos muitos reverendos padres tivessem sido esmagados com os outros. Kant, por sua vez, em sua História e fisiografia do terremoto, publicado em 1756, explicou o sismo com razões físicas, geológicas e morais. Em Portugal, o debate foi frenético.
Do terremoto no miúdo às razões de Estado, assim se constrói o texto de Mary del Priore – se é que vale o verbo num tema como este – numa alternância de escalas de observação verdadeiramente notável, da impressão de um sobrevivente às motivações políticas ou intelectuais dos grandes atores. É livro que ensina muito aos interessados em conhecer melhor a Lisboa setecentista e a ascensão do pombalismo numa sociedade dilacerada entre dois tempos, como escreveu Maria Yedda Linhares na apresentação da obra. Mas o livro atenderá também – e muito bem – aos que quiserem apenas acompanhar de perto uma tragédia humana de outrora.
JORNAL DO BRASIL
Rio de Janeiro
02/08/2003
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