O BRASIL ENTRE A FÉ E O CETICISMO
Cartas trocadas entre Machado de Assis e Joaquim
Nabuco pintam o universo mental do país em um
momento decisivo de sua modernização
Maria Alice Rezende de Carvalho
Especial para a Folha (Caderno Mais!)
"Fé e dúvida". Com esses
termos, Graça Aranha conclui sua introdução
à primeira edição da correspondência
que Joaquim Nabuco e Machado de Assis mantiveram entre 1865 Nabuco,
um jovem de 15 anos e setembro de 1908, dias antes da morte
de um fatigado Machado. E não há exagero na afirmação
de que, muito próximo deles, mencionado, por vezes, em suas
cartas, Graça Aranha se impõe aos leitores como um
sutil narrador, esclarecendo passagens mais obscuras dos textos
e, com reconhecido êxito, compondo perfis ajustados àqueles
dois grandes emblemas intelectuais do Brasil: Nabuco, a fé;
Machado, o ceticismo. A introdução de Graça
Aranha é, pois, parte inextrincável do diálogo
epistolar entre Joaquim Nabuco e Machado de Assis, a que se soma
agora, na edição que a Topbooks e a Academia
Brasileira de Letras dão a público, o prefácio
de José Murilo de Carvalho. O prefácio contém
o que na apresentação de Graça Aranha inexiste
uma competente apreciação da crise final do
Império e dos primeiros anos da República, marcados
pela turbulência política e, principalmente, por grossa
ressaca moral dos "homens de letras", deserdados, os que
o foram, da monarquia, e desiludidos, mesmo os republicanos, quanto
às possibilidades de que o novo regime pudesse corresponder
aos seus ideais de renovação do país. Aquele
é, pois, um momento particular da história do Brasil,
em que, nas palavras de José Murilo de Carvalho, o "absenteísmo
da inteligência na política brasileira" se converteu
em empenho dos intelectuais em construir seu específico lugar
na vida nacional do que a "Revista Brasileira",
de José Veríssimo, e a fundação da Academia
Brasileira de Letras seriam importantes alicerces. Entre a introdução
de Graça Aranha e o prefácio de José Murilo
de Carvalho, textos extraordinariamente complementares, há,
contudo, o intervalo de precisas oito décadas (1923-2003)
e sensível mudança de enfoque o que revela,
além do traço pessoal dos autores, uma sintomática
ressignificação da questão dos intelectuais
no Brasil. Assim, em Graça Aranha, o tema de mais relevo
é o da emergência de um Brasil reflexivo, isto é,
de um país capaz de se pensar e de traduzir as vicissitudes
locais do espírito em uma linguagem cosmopolita. Vazado pelo
modernismo dos anos 20, o tratamento que o autor confere aos missivistas
os valoriza como órgãos de uma consciência nacional
situada na periferia do mundo, empenhados em adequá-la ao
relógio do Ocidente moderno.
"Essência imaginativa"
A atenção de Graça Aranha, portanto, não
se atém propriamente ao conteúdo das cartas, mas ao
significado daquele diálogo entre dois dos maiores gênios
do Oitocentos brasileiro. Sua abordagem será, pois, a de
"fazer falar" um Brasil de que já se ouviam poucos
ecos em 1923, no momento em que a correspondência foi publicada:
um Brasil de "essência imaginativa", anterior ao
realismo político que dominava a República àquela
época.
E, embora Graça Aranha defenda a emoção estética
como fundamento do nosso "inconsciente mítico"
contra a imaginação histórica européia,
ele soube valorizar a tensão constitutiva daqueles intelectuais,
premidos, segundo ele, entre a volúpia e a civilização,
entre o sentimento brasileiro e as realizações do
velho mundo, entre a instável alma brasileira e a "solidez
majestática" que lhes vinha da Inglaterra e lhes domava
o espírito, conformando a delicadeza moral expressa nas cartas.
Em José Murilo de Carvalho, diferentemente, tantos anos de
tratamento disciplinar da questão dos intelectuais não
seriam sem conseqüência. Sua análise ilustra o
tratamento que o tema vem encontrando nas ciências sociais
e que, independentemente da filiação teórica
de cada estudioso em particular, tem consagrado a perspectiva da
institucionalização do mundo das letras e da cultura.
Assim, sob a ótica de José Murilo de Carvalho, o principal
da correspondência entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco
se prende à discussão da nova institucionalidade requerida
pela atividade intelectual no Brasil do início do século
20. A abordagem é, por isso, contemporânea e vai de
par com outras sugestivas contribuições no âmbito
da produção universitária. O trabalho de Sérgio
Miceli, "Intelectuais à Brasileira" (Cia. das Letras,
2001), por exemplo, referido, aqui, por sua precedência, incide
sobre esse aspecto, considerando, em sintonia com o texto de José
Murilo de Carvalho, que a atividade literária daqueles anos
"conheceria a exigência da construção de
uma esfera autônoma, regulada por valores próprios
e regras especiais de comportamento" um campo, na designação
que Miceli toma emprestada a Pierre Bourdieu, do qual a Academia
Brasileira de Letras viria a ser parte.
Precocidade
De modo que a produção literária, até
então enredada na política, como no caso paradigmático
de Joaquim Nabuco, conheceria, com a Academia, um primeiro esforço
de autonomização isso que José Murilo
de Carvalho analisa tão bem, ao fazer menção
à disputa em torno da natureza daquela instituição:
se devotada apenas aos "literatos" ou se aberta à
totalidade dos homens públicos, no espírito da "Academie
Française", como era da preferência de Nabuco.
Prevaleceu, como se sabe, uma solução conciliadora,
que reduziu nominalmente a amplitude da Academia Brasileira ao lhe
apor o "de Letras", embora, na prática, o recrutamento
de seus sócios viesse a ser orientado por critérios
mais largos. Dessa conciliação extrai-se, aliás,
um sintoma da precocidade da ABL em relação às
condições de profissionalização dos
escritores brasileiros e, portanto, um certo comprometimento dos
seus idealizadores com o receituário organizacional que marcou
o mundo dos intelectuais no século 19 posição
intervalar que acabou municiando diferentes críticos da nova
instituição, seja por não reconhecerem no Brasil
um dinamismo literário que já justificasse aquela
casa de "autores", seja por verem nela uma agência
passadista, de distribuição de honrarias em um século
igualitário. Diante de ambas as avaliações
como antecipação ou como retardo , a
Academia Brasileira de Letras precisou se explicar à nação,
adquirir aliados, conformar um espírito de cordialidade entre
gerações diversas, antagonistas políticos,
"partidos" literários. Salvou-a, segundo José
Murilo de Carvalho, a dedicação de Nabuco e Machado
àquele projeto, tal como busca apontar a partir do conteúdo
das cartas. A correspondência é marcada pela brevidade
dos textos e pela simpatia mútua, declarada pelos autores.
Há, nela, um pouco das viagens de Nabuco em suas missões
diplomáticas, as flutuações de ânimo
de Machado, comentários de ambos acerca de suas respectivas
obras, e muita troca de idéias sobre os nomes que deveriam
compor o panteão intelectual brasileiro.
Saudades reafirmadas
Além disso, há saudades constantemente reafirmadas
pelo amigo ausente e melancolia do que sempre permaneceu no Brasil.
As cartas são, portanto, um retrato reduzido do universo
mental do país, em um momento decisivo da sua modernização
o que justifica, amplamente, a sua circulação
pública no início do século passado bem como
agora, recém-aberto um novo século.
A certeza da atualidade da correspondência é, então,
mais um aspecto a aproximar a introdução de Graça
Aranha do prefácio de José Murilo de Carvalho. No
prefácio de 2003, o tom é político, e a recuperação
das cartas valoriza-lhes a reta intenção de uma arquitetura
institucional democrática. A República das Letras,
nesse caso, teria muito a ensinar à nossa vida republicana,
em que nem sempre a convivência cortês entre antagonistas
é patrimônio tão estimado como ali. A introdução
de 1923, por sua vez, destaca a funda herança da imaginação
nacional na moderna trajetória brasileira. Essa, enfim, a
lição complementar que Graça Aranha apõe
ao receituário político que José Murilo de
Carvalho extrai da correspondência: a afirmação
de um Brasil sintonizado com suas melhores tradições,
que tem na fé um estímulo à obra e, na dúvida,
o acicate crítico do permanente aperfeiçoamento.
Maria Alice Rezende de Carvalho é professora
titular de sociologia do Instituto Universitário de Pesquisas
do Rio de Janeiro e autora de "O Quinto Século
André Rebouças e a Construção do Brasil"
(Revan).
FOLHA DE S. PAULO
São Paulo
11/07/2004
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