UM CLÁSSICO
Machado de Assis & Joaquim Nabuco - Correspondência
Wilson Martins
A nobre amizade que reuniu dois dos mais altos
espíritos brasileiros inspirou a extraordinária obra-prima de crítica
intelectual que é a introdução de Graça Aranha ao volume da “Correspondência”
de Machado de Assis e Joaquim Nabuco (pref. à 3ª ed. de José Murilo
de Carvalho. Rio: Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2003).
Em teoria, nada deveria tê-los aproximado e, menos ainda, reconhecer
as afinidades profundas que os identificaram para sempre, pois,
tudo bem considerado, trata-se de um triângulo impossível: num vértice,
Graça Aranha, intelectual moderno e cosmopolita, projetado mentalmente
para o futuro, e, nos outros, dois homens condicionados pelo século
XIX em que se haviam formado. Um deles provinha das classes aristocráticas,
enquanto o outro originara-se nos estamentos mais inconfundivelmente
populares.
Contudo, havia no tropismo renovador de Graça
Aranha o elemento estabilizante da cultura jurídica, conservador
por natureza, enquanto em Machado de Assis a aristocracia inata
da inteligência e do temperamento identificava-o com as propensões
humanitárias de Joaquim Nabuco, ambos defrontando-se com o terrível
problema moral do tempo que era a escravidão. A verdade inacreditável
é que, partindo de pontos opostos, vieram a encontrar-se nos mesmos
ideais literários e políticos, estes no sentido amplo da palavra,
porque a Abolição foi tudo isso, além do que representou como abertura
de espírito: “O heroísmo de Joaquim Nabuco”, escreve Graça Aranha,
“foi o de separar-se da aristocracia e fazer a Abolição. O heroísmo
de Machado de Assis foi uma marcha inversa, da plebe à aristocracia
pela ascensão espiritual. Ambos tiveram de romper com as suas classes
e heroicamente afirmar as próprias personalidades”.
Para aí chegar, acrescenta ainda, “a viagem espiritual
de Machado de Assis foi bem secreta. Veio do nada, venceu as suas
origens modestas, tornou-se homem de cultura, de gosto e criou a
sua própria personalidade”. Note-se que foi mais fácil para Joaquim
Nabuco despojar-se do que tinha do que para Machado de Assis afirmar-se
pelo que era, conforme Rui Barbosa acentuou na famosa oração fúnebre:
“Nascido com uma dessas predestinações sem remédio ao sofrimento,
a amargura do seu quinhão nas expirações da nossa herança o não
mergulhou no pessimismo dos sombrios, dos mordazes, dos invejosos,
dos revoltados (...)”.
É significativo que, no desenvolvimento dessas
idéias, Rui Barbosa identificasse o espírito de Machado de Assis
não com as suas origens raciais (tolice que, ao contrário, seria
repetida à exaustão pelos tempos afora), mas às fontes paradigmáticas
do classicismo ateniense, à literatura clássica por excelência:
“A ironia mesmo se desponta, se embebe de suavidade no íntimo desse
temperamento, cuja compleição sem desigualdades (...) dir-se-ia
emanar das mãos da própria Harmonia, tal qual essas criações da
Hélade, que se lavraram para a imortalidade num mármore (...)”.
O mesmo paralelo ocorreria a José Veríssimo,
em alusão aliás infeliz, vendo em Machado de Assis, embora mulato,
“um grego da melhor época”, ao que Joaquim Nabuco reagiu com vivacidade:
“Eu não teria chamado o Machado de mulato e penso que nada lhe doeria
mais do que essa síntese. (...) O Machado para mim era um branco,
e creio que por tal se tomava (...). Eu pelo menos só vi nele o
grego”. Em outras palavras, Nabuco “oficializava” expressamente
o processo homogeneizador em que afinal se resolvia a perfeita identificação
espiritual que os unira através dos anos e com raízes cada vez mais
sólidas, o que se confirmava até por coincidências inesperadas,
mas sugestivas, da vida editorial, lembradas por Graça Aranha: “O
ano de 1900, que viu o “Dom Casmurro”, também viu “Minha formação”.
Machado de Assis agradece a Nabuco o exemplar e o julga sumariamente:
"melhor que memórias, posto que delas tenha parte”.
Ora, “Dom Casmurro” é um livro de memórias —
memórias proustianas e psicanalíticas (enquanto criação literária),
antes de Freud e de Proust — assim como, em Nabuco, a campanha abolicionista
derivaria de um episódio de infância, em rigorosa ortodoxia freudiana
e proustiana. Foi num “instante do inconsciente infantil”, escreve
Graça Aranha em vocabulário precursor, que o sentimento da Abolição
se “infiltrou” no espírito de Joaquim Nabuco, conforme ele mesmo
rememorou em “Minha formação”: “Foi este o traço inesperado que
me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivera até
então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava (...).”
Se a Abolição foi a causa de Joaquim Nabuco,
que “não era homem de partido; era homem de idéias políticas”, a
Academia foi a causa de Machado de Assis, foi a sua “obsessão”,
diz Graça Aranha. Ele “acreditou na Academia”, encontrando em Nabuco
um aliado estimulante e consagrador. Já vivendo no estado de espírito
que prenunciava o rompimento de 1924, Graça Aranha encarava com
alguma ironia o ilustre sodalício: “Nada interessa tanto à vida
acadêmica como uma eleição. (...) Na Academia o sentimento eleitoral
é o mais ativo de todos, e a Academia Brasileira, graças ao seu
quociente de mortos, jamais foi uma academia de mortos”.
As peripécias eleitorais vinham desde os saudosos
(?) tempos em que não havia gratificações, chegando um ingênuo a
sugerir que os acadêmicos pagassem uma mensalidade para mantê-la.
Houve sessões com dois ou três participantes, outras nem se realizavam.
Para resolver dificuldades surgidas com algumas candidaturas, Nabuco
propôs seriamente que se falsificasse a eleição (carta de 10/2/1899),
o que, se não ocorreu naquele momento, diz a pequena história que
ocorreria em alguns outros (Josué Montello procura até hoje a cédula
que desapareceu da urna e teria permitido a eleição de Juscelino
Kubitschek). O mesmo olímpico Nabuco revelou-se, de resto, mais
maquiavélico do que poderíamos pensar, sugerindo “dilatar sempre
o prazo das eleições, porque no intervalo ou morre algum dos candidatos
mais difíceis de preterir, ou há outra vaga”.
Ele andava em busca das “superioridades do país”,
propondo um critério eleitoral que, através dos tempos, tem produzido
os resultados mais diversos.
Caderno Prosa & Verso
O GLOBO
Rio de Janeiro
03/01/2004
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